Projeto Rondon ajuda a promover a cidadania no interior do Sergipe

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Pedro Henrique Tubiana Pereira. Para acessar, clique aqui.

Extensão | Rondonistas da UFRGS narram experiências e histórias da participação na Operação Mangabeiras, em São Francisco (SE)

*Foto: A estudante de Nutrição Raquel Wainstein lê um livro para crianças em uma roda (Crédito: Luciana Pinheiro)

Durante duas semanas de calor intenso e muito trabalho, Mariana Freitas, estudante de Enfermagem na UFRGS, percebeu que, em uma cidade com uma expressiva população negra, muitas pessoas tinham dificuldades de se identificar dessa forma. 

A cidade é São Francisco, no interior do Sergipe. Com pouco mais de 3 mil habitantes, o município foi um dos palcos para a “Operação Mangabeiras 2024”, que ocorreu entre 19 de janeiro e 4 de fevereiro, promovida pelo Ministério da Defesa através do Projeto Rondon, que visa à promoção da cidadania. A UFRGS apresentou um plano de intervenção e de oficinas e foi umas das instituições selecionadas para participar.

Todas as atividades são planejadas antes da viagem, a partir de uma intensa pesquisa e investigação sobre os problemas e as necessidades do local. Uma das atividades planejadas foi a oficina de Educação para as relações étnico-raciais, que seria ministrada por Mariana no dia 30 de janeiro, próximo ao fim da operação.

Nos dias anteriores à oficina, a estudante de Enfermagem aplicava, em visitas domiciliares, um questionário aos moradores, e uma das perguntas se referia à autodeclaração étnico-racial. Os residentes, muitas vezes, não sabiam que resposta dar. Mariana falava de si como exemplo: “Eu sou uma mulher negra, meu tom de pele é escuro”. Os habitantes imediatamente replicavam: “Como assim?! Você não é negra, é moreninha, não fala assim de ti”.

Ainda assim, as respostas referentes à autodeclaração étnico-racial que Mariana recebeu foram um baque para a discente e agregaram ainda mais relevância à oficina previamente planejada.

“Comecei a perceber que a população não tinha nem o básico sobre o letramento racial, sendo que a maioria da população é negra”

Mariana Freitas
Mulher negra, com cabelos crespos e jaleco amarelo, aparece demonstrando um movimento de primeiros socorros no peito de um boneco de plástico. Ao seu lado, está outra pessoa segurando um microfone.
Estudante de Enfermagem, Mariana Freitas demonstra um movimento no peito de um boneco na oficina de primeiros socorros. (Foto: Luciana Pinheiro)
A menina de cabelo cacheado

Durante a operação, as rondonistas – como se chamam as participantes do Projeto Rondon –, mantiveram intenso contato com os habitantes da cidade de São Francisco. Uma das crianças, uma menina negra de cabelo cacheado, era descrita como agressiva, o que chamava muito a atenção das rondonistas.

Sobre ela, Mariana comenta: “Ela se encantou muito pelas gurias brancas do olho claro da nossa equipe. Ela ficava dizendo o quanto as meninas eram bonitas, e o quanto ela era feia, sendo que (nossa!) era linda a criança. Falava o quanto era feia e não gostava do próprio cabelo, o quanto falavam mal dela. A guriazinha sofria racismo, e o jeito que ela achou de não se afetar tanto foi ser agressiva”.

As rondonistas passaram a responder a essa agressividade com carinho, lembrando diariamente a criança de sua beleza. Depois de um tempo, a mãe da menina de cabelos cacheados compartilhou o quanto o comportamento da filha havia mudado durante os dias em que as rondonistas estavam na cidade.

Tia Mel  

“Tia Mel! Tia Mel!”, gritavam as crianças na noite de domingo, dia 28 de janeiro. Era assim que se referiam a Melissa Knebel, estudante de Odontologia na UFRGS. Estavam todas reunidas para o “Cine Rondon”, momento em que um filme seria projetado na parede de uma das casas da cidade de São Francisco. Chamavam por Melissa para mostrar que tinham usado o kit de uma escova e pasta de dente distribuído na oficina de higiene bucal ministrada pela estudante.

Para Melissa, a experiência do Projeto Rondon foi revigorante: “Voltei com muito gás para querer me dedicar às coisas que eu realmente tenho interesse. Ver como eu me envolvi e como deu certo fez eu valorizar mais as coisas que tenho aqui. Me deu mais vontade de trabalhar no SUS, no posto, como era minha ideia inicial”.

A extroversão da rondonista não apenas cativou as crianças de São Francisco como também fez a estudante ser a escolha perfeita para apresentar um show de talentos preparado pelo grupo para a noite de sábado, dia 27 de janeiro.

Projeção de cena do filme "Turma da Mônica: Laços" aparece em uma parede de casa, enquanto várias pessoas estão assistindo sentadas em cadeiras de plástico. Na cena, menino que interpreta o personagem Cebolinha aparece olhando para cima.
Uma das atividades realizadas na Operação Mangabeiras 2024, em São Francisco, foi a projeção do filme “Turma da Mônica: Laços” na parede de uma casa. (Foto: Luciana Pinheiro)
Uma cidade talentosa

Para Raquel Wainstein, estudante de Nutrição na UFRGS, o show de talentos promovido em colaboração com os rondonistas do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF Sudeste MG) foi um dos destaques da viagem: “Destaco como um dos dias mais marcantes. Era daqueles dias que tinha tudo para dar errado, e deu certo. De repente a gente olha a praça da cidade e tem 120 cadeiras, pessoas se divertindo, ligando o celular e fazendo luzes”. 

Um dos objetivos das participantes da UFRGS era movimentar a economia da cidade, coisa que o show de talentos tornou possível ao passo que os comerciantes se juntaram na praça para vender seus produtos enquanto o evento acontecia.

Naquela noite, a harmonia entre as duas instituições rondonistas operando em São Francisco era inegável. Um palco lindamente decorado foi estabelecido na praça da cidade, e enquanto alguns tinham a função de convocar a população, outros coletavam as inscrições. Outros tinham ainda que ir atrás da música de fundo, visto que a grande maioria apresentou o canto enquanto talento. Mas não foi só isso: uma das senhoras apresentou bordado, e uma criança desenhou em uma determinada janela de tempo.

O maior problema da cidade

Ainda que recreativo, o show de talentos tinha a intenção de integrar as rondonistas à comunidade. A estudante de Museologia na UFRGS Caroline Brum Machado relata um encontro ao fim da atividade: “Uma funcionária da assistência social disse que várias crianças autistas se apresentaram naquela noite, e que ela não imaginava aquilo”.

“Eu sei desenhar tênis, esse é o meu talento”, disse uma dessas crianças autistas na inscrição do evento. “O momento em que a gente recebeu um feedback da comunidade, dizendo que crianças que subiram ao palco eram muito retraídas e não sociabilizavam, e que estávamos proporcionando essa sociabilização, foi muito marcante; na hora, segurei o choro”, conclui Caroline.

Foi em uma oficina de práticas de participação popular, ministrada por Victoria Mendonça, estudante de Administração na UFRGS, que a comunidade elencou a falta de conhecimentos para lidar com crianças autistas como o problema da cidade com maior urgência de resolução.

“A gente já tinha a ideia de falar sobre isso, mas os professores [que orientaram e acompanharam as rondonistas] acharam que eles [a população local] não iriam identificar isso enquanto um problema, que ia ser difícil pra gente. Mas na real não, foi bem fácil para eles discutirem isso”

Caroline Brum Machado
Muito mais do que a saudade

De última hora, Caroline foi convidada por Victoria a fazer parte da oficina de práticas de participação popular. Para a estudante de Museologia, foi uma surpresa feliz: “Eu realmente quero trabalhar com educação museal para crianças e teoria museológica. Aí eu cheguei lá e vi que eu realmente quero fazer o mestrado no Design, pensando a inclusão de pessoas neurodivergentes no museu”.

É unânime. Tendo retornado a Porto Alegre, a saudade que fica da experiência é compartilhada por todas as rondonistas. Mas para além da saudade, ficam também os impactos da “Operação Mangabeiras 2024” tanto na cidade de São Francisco quanto no próprio coração das meninas que cruzaram o país.

Victoria Mendonça foi a criadora da oficina “futuro rondonista”, que tem o objetivo de plantar a semente do Projeto Rondon entre os mais jovens da comunidade, estimulando o exercício da cidadania. Raquel comenta que todos os jovens reproduziam um mesmo discurso: “Eu detesto esse município, não tem o que fazer aqui. Não tem futuro!”. E acrescenta, ressaltando a importância do trabalho idealizado pela colega: “A gente percebia que só faltava um estímulo. Mostrar que eles têm muitas potencialidades, e o município também, eles só precisam se unir”.

Mulher loira, com jaleco que carrega a escrita 'Projeto Rondon: lição de vida e de cidadania' aparece falando para aproximadamente três pessoas sentadas a sua frente.
Atividades desenvolvidas durante a Operação Mangabeiras foram planejadas previamente pelas rondonistas a partir de uma investigação sobre as problemáticas da cidade. (Foto: Luciana Pinheiro)

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