Licenciatura em Educação do Campo forma professores oriundos do meio rural para atuar em suas comunidades

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Litoral Norte | Com uma proposta pedagógica diferenciada, curso de graduação busca ampliar o acesso da população do campo à Universidade

*Foto: Marcelo Pires/JU

Com uma árvore desenhada no quadro da sala de aula, alunos e professores vão até a frente do espaço e colam palavras nos galhos, tronco, folhas e raízes. É assim que inicia a avaliação em que os alunos apresentam os resultados dos trabalhos desenvolvidos ao longo do semestre no curso de Licenciatura em Educação no Campo do Câmpus Litoral Norte (CLN) da UFRGS. As apresentações vão desde o sistema mais clássico – alunos falando em frente à turma sobre os resultados das atividades – até apresentações mais teatralizadas, em que os discentes interpretam os procedimentos desenvolvidos.

O encerramento do semestre não é a única coisa singular desse curso de graduação: a própria proposta pedagógica é diferente da maioria dos outros, assim como o perfil dos alunos e do próprio câmpus.

A Licenciatura em Educação no Campo é oferecida pela UFRGS em Porto Alegre e no CLN. Ambos surgem a partir de um edital publicado pelo Ministério da Educação em 2013 que buscava estimular a criação de cursos focados no meio rural. A princípio, eram chamados de Programas Especiais de Graduação (PEG), o que garantia algumas especificidades, como um currículo com maior autonomia e a existência de uma mesma turma que segue do início ao final do curso.

Outra particularidade é o ingresso do PEG, feito por um processo seletivo específico. Com isso, é possível focar mais em determinado público-alvo, uma vez que a intenção é formar pessoas que já venham do campo. O primeiro edital de ingresso, por exemplo, era voltado apenas para docentes que já atuavam em escolas em áreas rurais. Outra vantagem de que o curso seja um PEG é uma maior autonomia para a formulação da prova de ingresso. Essa prova, explica a coordenadora da comissão de graduação do curso, Marilisa Hoffmann, “é toda pensada e contextualizada para o sujeito do campo com temas do campo”.

Por outro lado, por não ser um curso permanente, para que novas turmas sejam ofertadas é necessário concorrer aos editais específicos. Para que a continuidade seja garantida, é preciso que o curso passe para a modalidade permanente – opção escolhida pelo CLN. Por isso, a partir de 2024 haverá mudanças na grade curricular e também no ingresso, que passará a ocorrer pelo Vestibular.

Os alunos

O perfil dos alunos foge do imaginário do universitário jovem, urbano e de classe média. Hélio Vicente Fontana, de 70 anos, que decidiu entrar na universidade por incentivo da filha, começou o curso em 2020. Hélio comenta que não poderia cursar a universidade em qualquer outro lugar: isso apenas foi possível, diz, pela existência do Câmpus Litoral.

Imagem mostra homem branco idoso, com cabelo e bigode grisalhos. O mesmo está com um óculos em seu pescoço, suéter de lã e camisa com botões. No fundo, cenário do Campus Litoral da UFRGS, com gramado verde e céu nublado.
Morador de Tramandaí, Hélio Vicente Fontana iniciou o curso em 2020 (Foto: Marcelo Pires/JU)

Dos discentes entrevistados, apenas Hélio era morador de Tramandaí. A distância é um desafio para muitos, como é o caso de Carla Baul, 52 anos, moradora de Guaíba, a mais de 130 km do câmpus. Para continuar estudando, Carla teve que sair do emprego quando as aulas voltaram ao regime presencial e só consegue seguir no curso graças a um primo que vive em Tramandaí. “Na segunda-feira eu desço aqui no câmpus, depois eu vou para casa do meu primo e na sexta eu saio daqui para rodoviária e vou para minha casa”, conta.

A distância é uma das dificuldades recorrentes na Educação no Campo, visto que os alunos, via de regra, são oriundos das comunidades em que vão atuar. Para lidar com as singularidades da população rural é preciso uma abordagem pedagógica que as leve em conta, em que a comunidade seja parte integral do processo de aprendizado: a pedagogia da alternância.

A Pedagogia

A Licenciatura em Educação no Campo tem mais duas características que a diferenciam dos cursos convencionais: a interdisciplinaridade e a pedagogia da alternância. Eixos do curso, essas duas facetas estão presentes em todo o processo de aprendizado, desde a elaboração do conteúdo feita pelos professores até a prática dos alunos.

Cada semestre tem um “tema gerador”, ao redor do qual todas as disciplinas devem gravitar. Professora do CLN, Elisete Bernardi explica: “Antes de a gente focar só na ementa, a gente tem que olhar para o tema gerador e ver nesse tema como que o meu componente [disciplina] contribui, problematiza, provoca questões da ciência”.

“A centralidade não é a disciplina e, sim, a perspectiva interdisciplinar”

Elisete Bernardi

O semestre é decidido de forma coletiva pelos professores, diferente do modelo universitário hegemônico em que as disciplinas são centralizadas no docente responsável. A interdisciplinaridade demanda uma elaboração conjunta que permita a intersecção entre os diferentes assuntos. “Os professores se reúnem antes de iniciar o semestre para planejar como vai se dar esse trabalho. A partir dessa articulação de todas as disciplinas, as tarefas são pensadas coletivamente entre todos os professores daquela etapa”, esclarece José Vicente Robaina, docente do curso. Isso se reflete também na sala de aula, onde normalmente mais de um professor está presente ao mesmo tempo. Outro reflexo é nas avaliações, quando os docentes avaliam não apenas as suas matérias, mas também as ministradas pelos colegas.

O segundo fator de singularidade do curso é a pedagogia da alternância, em que, resumidamente, o tempo de educação se divide entre “tempo universidade” e “tempo comunidade”. O primeiro é o momento em que o aluno deve estar na Universidade – a maior parte do tempo do curso, mas não apenas em sala de aula, incluindo também atividades em laboratórios e bibliotecas. O “tempo comunidade” é quando os alunos vão até as comunidades às quais estão vinculados e executam as atividades práticas e pesquisas. É ali que a capacidade dos alunos de ensinar no campo é exercitada e aprimorada.

Imagem mostra pessoa branca, com cabelos curtos e escuros, usando jaqueta preta. Na sua frente, está escrito 'Agricultura Familiar', em painel que possui desenho representando uma árvore.
Na atividade de avaliação do semestre, alunos da Licenciatura em Educação do Campo apresentam os resultados dos trabalhos desenvolvidos (Fotos: Marcelo Pires/JU)
O câmpus

“Entre a praia e a cidade tem o campo.” Essa frase foi usada por uma das alunas para descrever a situação de esquecimento que as comunidades do campo sofrem, afetando também o próprio câmpus. Apesar do nome e de estar no território da cidade de Tramandaí, os prédios do CLN estão longe do centro, ao longo de uma rodovia. Isso significa que não existe possibilidade real para os estudantes morarem nos arredores da Universidade, e transporte e moradia estão entre as suas principais demandas. Aluno do curso, Raul Oliveira Orcy da Silva pontua que: “a moradia é uma questão que permeia o Câmpus Litoral Norte desde que ele foi fundado. Isso acontece por diversos motivos, mas o principal é que aqui o público é bem classe trabalhadora, então isso faz com que os auxílios sejam cada vez mais importantes para a permanência estudantil”.

A razão da existência da Licenciatura para Educação no Campo é atingir quem normalmente não acessa a Universidade, aponta Marilisa.

“Nós precisamos que essas pessoas acessem a universidade, que elas achem que aqui é lugar delas, porque aqui é o lugar delas, e que elas tenham condições de permanência. Precisamos pensar nessas pessoas: indígenas, quilombolas, ribeirinhos, nos agricultores familiares, ou seja: essas pessoas que não pensam que a UFRGS é pra elas, nosso curso é para essas pessoas“

Marilisa Hoffmann

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