Perguntar ofende, sim: problematizações feministas sobre a proposta de plebiscito sobre aborto no Brasil

Publicado originalmente em Brasil de Fato por Clara Wardi. Para acessar, clique aqui.

Proposta de consulta à população é enviesada e afronta o direito de mulheres, meninas e pessoas que gestam

Frequentemente, parlamentares de extrema direita do Congresso Nacional utilizam dados enviesados sobre a opinião dos/das brasileiras a respeito do aborto para endossar seu projeto político de restringir ou mesmo acabar com o direito ao aborto legal no país. Não à toa, como reação ao voto da ex-ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber, na ADPF 442 sobre aborto, uma consulta à população está sendo articulada no Senado, por meio do PDL (Projeto de Decreto Legislativo) 343/2023, que propõe um plebiscito. Mais da metade dos/as senadores/as (46) assinam o pedido, o que demonstra o posicionamento conservador da Casa, que tem se tornado arena de disputa sobre o tema da interrupção da gravidez.

A proposta é pedir para população responder “sim” ou “não” à seguinte questão: “Você é a favor da legalização do crime de aborto?”. Ao explicitar tão descaradamente a ideia de crime, essa pergunta é uma afronta aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, meninas e pessoas que gestam. Perguntar à população, que muitas vezes não sabe que existe aborto legal no Brasil, ou até mesmo nunca chegou a ter acesso a um planejamento familiar, não garante uma “escolha livre”. Essa estratégia nem mesmo é uma consulta “legítima”, como mencionado no texto da justificativa do plebiscito. Conforme o paradigma da justiça reprodutiva, não podemos chamar de “escolha” as decisões tomadas sem que estejam subsidiadas por informações seguras.

Há um dito popular, muito utilizado no senso comum para acobertar situações machistas, que afirma: “perguntar não ofende”; mas, como feministas, sabemos que nenhuma questão é neutra. A depender de como a pergunta é feita, chamar de ofensa é pouco: é possível criar falsas verdades e decisões políticas injustas com a população, por reproduzir estruturas de poder e opressão como o patriarcado, racismo e o classicismo. 

Os usos políticos do plebiscito sobre aborto

A forma com que se pergunta à população sobre o tema também foi recentemente problematizada pela primeira meta-análise da opinião pública sobre aborto no Brasil, realizada pelo CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e Assessoria), SPW (Observatório de Sexualidade e Política, na sigla em inglês) e o CESOP (Centro de Estudos de Opinião Pública – Unicamp), que analisou pesquisas de 1993 a 2023. 

Segundo os resultados, a pergunta que se mantém nos questionários ao longo dos anos é: “você é a favor da legalização do aborto?”. No entanto, nessa estrutura, a pergunta interpela a população sem definir as condições em que o procedimento é feito (se em risco de vida da mulher, em caso de estupro ou com feto incompatível com a vida, ou até mesmo dando alguma margem de idade gestacional, por exemplo), ignorando que a questão é profundamente sensível para muitos(as). 

Não à toa, a quantidade de pessoas que são contrárias supera os 70% ao longo dos últimos 13 anos. Porém, conscientes do limite da pergunta descontextualizada, os movimentos de mulheres e feministas se articularam para propor uma nova pergunta que permitisse trazer uma abordagem mais específica: “Você é a favor da prisão de mulheres por aborto?”. Essa pergunta foi incluída nas pesquisas desde 2018, e vem trazendo resultados significativamente mais empáticos com a condição das mulheres, meninas e pessoas que gestam: mais da metade da população é contrária à prisão das que abortam, segundo ressalta a meta-análise realizada pelo CFEMEA, SPW e CESOP. Essa pergunta indica que a população brasileira é menos conservadora do que se pensa sobre a questão do aborto no Brasil, tendendo a defender a descriminalização, independente de moralismos.

Perguntar, num suposto plebiscito, se as pessoas são a favor ou não da legalização de um “crime”, sem dúvidas, fortalece ainda mais o estigma sobre o tema, além de ser um constrangimento a cidadã e cidadão. Quem dirá que é a favor de um crime? Segundo o autor do PDL do plebiscito, senador Rogerio Marinho (PL/RN), “precisamos ser transparentes sobre nossas crenças e sobre a laicidade do Estado”. Sobre isso, é curioso perceber que mesmo anunciando o compromisso com o Estado laico, a única referência técnica utilizada a favor de sua argumentação na justificativa do projeto foi a nota contra a ADPF 442 feita pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), órgão católico de maior poder no país.

No encerramento da justificativa, há o esvaziamento total do debate que tem sido feito historicamente por profissionais da saúde, pelos movimentos de mulheres e feministas não só no Brasil, mas no mundo, que posicionam o aborto como um tema de saúde pública. Ao entender que o aborto é tratado como “uma simples cirurgia de retirada de uma pinta na pele”, que significaria “que a vida humana não tem nada de especial”, o autor do PDL e seus signatários ignoram os dados alarmantes de violência sexual contra meninas e mulheres, as gestações com risco de vida e até mesmo a tortura que é continuar com uma gravidez mesmo sendo inviável ou indesejada.

Há a possibilidade de o PDL seguir tramitando em 2024, ano de eleições municipais.  Relacionar a eleição com um plebiscito nestes termos pode degenerar todo o debate eleitoral com essa questão capciosa e completamente enviesada. Perguntar, então, ofenderia, sim, sendo mais um ataque covarde e reacionário dos antidireitos contra o debate democrático sobre o projeto de país que deveria prevalecer durante a campanha eleitoral e contra os direitos sexuais e reprodutivos. 

Aborto é nó de tensão entre os Poderes

Além de tentar provar a tese defendida pelos conservadores de que a população brasileira supostamente seria contra o direito ao aborto no país, a tentativa do PDL é de propagar as disputas entre poderes. Um ponto de atenção na justificativa é a de que um plebiscito vem com a intenção de “prestigiar a independência e a harmonia entre os Poderes da República, já que a decisão do povo, neste caso, vinculará, no tema, todos os Poderes.” Essa frase reflete que o tema do aborto tem sido um importante nó de tensão nas decisões políticas do alto escalão brasileiro.

As alfinetadas e até ameaças entre os poderes, inclusive ao STF, não vêm de agora. Trata-se de uma herança política conservadora que ganhou força com o bolsonarismo e se inflamou durante a pandemia da Covid-19, mantida no discurso de muitos parlamentares do Congresso mais conservador da história. Muitos deles argumentam que o Supremo não é legítimo para decidir sobre o aborto, como também não o deveria ter feito sobre a descriminalização do porte de drogas para uso próprio (recentemente discutida), o que significaria uma provocação direta ao Legislativo e abuso de poder. 
O Executivo também não fica fora disso. As tensões trianguladas entre os três Poderes sobre o tema ficaram evidentes na votação ocorrida em outubro, em que o Senado rejeitou o defensor Igor Roque, indicado de Lula para assumir a presidência da Defensoria Pública da União, após associá-lo à posição pró-aborto. 

O senador Marinho ainda destaca o “alerta público” feito pelo Presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, quando tratou da descriminalização do porte de drogas para uso próprio: “decisão do STF representará verdadeira ‘invasão de competência do Poder Legislativo‘”. Vale destacar que Pacheco também é entusiasta da PEC 8/2021, que limita decisões do STF sobre declaração de inconstitucionalidade, entre outras atribuições, aprovada pelo Senado no final de novembro. 

Pressionar o posicionamento de Pacheco sobre o aborto é uma das estratégias declaradas pelo senador Eduardo Girão (NOVO/CE), no que se refere ao avanço do tema no Congresso. A pressão não ocorre apenas em nível federal, vários presidentes/parlamentares de câmaras municipais e assembleias estaduais estão enviando ofícios ao presidente do Senado, notificando-o sobre a moção de repúdio contra a ADPF 442 articulada em seus territórios.

No voto de Rosa Weber na ADPF 442, a competência do STF para julgar essa matéria aparece logo no início da argumentação, ressaltando que “assim como em praticamente todas as democracias liberais (com raras exceções das democracias puramente majoritárias), também na democracia brasileira a função de controlar as leis e atos do poder público para garantir que elas estejam em conformidade com a Constituição é exercida por órgão independente daqueles responsáveis por aprovar as leis. Este órgão é tipicamente uma Suprema Corte ou Tribunal Constitucional”. A ex-ministra ainda completa dizendo que “isso é importante porque a democracia não se resume à regra da maioria. Na democracia, os direitos das minorias são resguardados, pela Constituição, contra prejuízos que a elas (minorais) possam ser causados pela vontade da maioria”.

Nesse sentido, a interrupção da gestação, prevista enquanto um direito fundamental e humano de meninas, mulheres e pessoas que gestam não é matéria que pode ser submetida à consulta via plebiscito, segundo nosso regimento jurídico. O argumento se baseia no seguinte: a consulta pública, neste caso, é inconstitucional uma vez que a Constituição deve resguardar os direitos das minorias, conforme Rosa Weber argumentou. Logo, não seria democrático submeter a plebiscito uma proposta que propõe restrições aos direitos fundamentais e humanos.

Que perguntas queremos?

Tendo em vista esse cenário, a proposta de plebiscito não passa de uma demonstração de força antidemocrática do Legislativo contra o Judiciário por meio da instrumentalização do povo brasileiro a partir de uma pergunta completamente desonesta com as mulheres, meninas e pessoas que gestam. Perguntar se as pessoas são “a favor do crime de aborto no Brasil” fortalece a falta de acesso à saúde e as iniquidades raciais, de gênero e de classe nas quais o aborto está inserido. Além disso, contribui para os alarmantes dados da mortalidade materna e de gravidezes na infância e adolescência no país. 

É preciso ter em mente que a sociedade brasileira não é tão conservadora sobre o aborto quanto se pensa. Como visto na meta-análise feita pelo CFEMEA, SPW e CESOP, mais da metade da população e, até mesmo dos católicos e evangélicos, é contrária à prisão de mulheres que tenham interrompido uma gestação. 

Além dessa pergunta mais empática com as necessidades de saúde e os direitos das meninas, mulheres e pessoas que gestam, é fundamental pensar sobre quais outras perguntas são importantes para nossa sociedade, ainda mais na janela de oportunidades representada pelas eleições municipais do ano que vem. Quais questões são capazes de disputar a agenda pública e revelar nossas realidades de forma honesta? As perguntas estruturam lutas, pesquisas e projetos de vida. Imaginar mundos mais acolhedores, justos e condizentes com os desejos das mulheres em suas diferentes formas de vida e territórios é compromisso do feminismo antirracista que acreditamos.

*Clara Wardi é assessora técnica do CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e Assessoria)

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Thalita Pires

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