Publicado originalmente em Ciência UFPR por Camille Bropp. Para acessar, clique aqui.
Artigo publicado no periódico Communications Psychology sugere em que contextos políticos o medo e a empatia social podem servir de motivação à adesão de medidas preventivas na crise global
Crises sanitárias graves como a pandemia de Covid-19, responsável por mais de 5,3 milhões de mortes no mundo, exigem colaboração coletiva para o seu enfrentamento. Mas o que levou as pessoas a aceitarem ou não as medidas de proteção contra a doença? O nível de confiança no governo, o medo e a empatia, segundo sugere uma pesquisa que levantou a opinião de cerca de 12,8 mil habitantes de 34 países, incluindo o Brasil, divulgada em artigo publicado na sexta-feira (15) no periódico Communications Psychology, do grupo Nature.
Os pesquisadores — entre eles os do projeto “Cross-cultural and multidimensional approaches to the impact of Covid-19 – Brazil”, coordenado na Universidade Federal do Paraná (UFPR) — cruzaram dados coletados em 2021 relacionados às percepções de temor sobre a doença, de empatia com os impactos sociais da pandemia e de confiança no governo, a fim de tentar explicar o que leva à adesão a medidas de prevenção.
A análise das respostas dos brasileiros ficou a cargo de cientistas da UFPR — do Programa de Pós-Graduação em Sociologia, do Grupo de Pesquisa em Sociologia da Saúde e do Departamento de Estatística — e da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). A pesquisa teve o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
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Com base em outras pesquisas sobre o assunto, os pesquisadores acreditavam que a confiança no governo — considerado no sentido de governança pública, ou seja, nas suas esferas em geral — seria um regulador tanto da empatia quanto do medo, ambas situações em que as pessoas se sentiriam compelidas a adotar ações de prevenção.
Diante disso, o estudo apostava que o medo da Covid-19 seria resultado de baixa confiança no poder público, enquanto a empatia social seria uma reação de solidariedade mais provável de acontecer em um cenário de alta confiança no governo, no qual as pessoas se sentem seguras o bastante para também pensar no outro.
Em parte, foi o que aconteceu. Na média, os resultados indicam que quando a confiança no governo é fraca — tanto faz se em nível individual ou coletivo — a população sentiu mais medo da doença e aderiu a comportamentos preventivos. Já a empatia — “preocupação pró-social empática”, no conceito do estudo — realmente se mostrou mais forte quando a confiança no governo era alta, mas apenas em nível individual, o que mostra uma correlação mais fraca.
Para resumir, o estudo sinaliza uma associação entre comportamentos preventivos e o medo em relação à Covid-19. Ou seja, quem tem medo da doença trata de se proteger como pode e entende, sendo que o medo está mesmo fortemente relacionado a uma baixa confiança na postura governamental.
A motivação solidária por trás da adesão às medidas preventivas, por sua vez, é mais difícil de explicar em termos de contexto nacional. Segundo o estudo, é provável que uma parte da população mantenha “comportamentos pró-sociais” independentemente da performance que percebe do poder público, isto é, da necessidade que a confiança ou não no governo indica. São pessoas que acreditam que se deve ter responsabilidade pelo bem-estar da coletividade.
Resultados do grupo brasileiro expõem conflitos internos da pandemia
Por outro lado, situações específicas verificadas em alguns países, entre eles o Brasil, apontam que a ação coletiva durante crises globais está condicionada a comportamentos com “nuances”.
O Brasil está entre os que mais relataram empatia para com o próximo quanto às consequências sociais da pandemia, em empate com as Filipinas. Isso mesmo estando entre os cinco países com menos confiança no governo em nível individual e entre os oito com menos confiança no governo em nível coletivo.
Em termos de adesão às medidas preventivas, o Brasil ficou entre os cinco países onde mais se declarou apoio ao enfrentamento, em empate com Bangladesh e México.
No caso do Brasil , portanto, os resultados mostram fuga da média do estudo no caso dos relatos de solidariedade, considerando que, no geral, ela esteve levemente atrelada à alta confiança no governo, pelo menos em nível individual.
Para comparação, as Filipinas, que empatou com o do Brasil na nota de maior empatia expressa, tem um dos mais altos percentuais de confiança coletiva no governo e uma nota mediana em termos de confiança individual no poder público.
Segundo a professora Rubia Carla Formighieri Giordani, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPR e um das autoras do artigo, a experiência de cada pessoa diante de uma pandemia é afetada por emoções que modificam os sentidos dos fatos — daí os eventuais conflitos no interior das considerações da pesquisa.
Uma análise possível para a discrepância no Brasil está no fato de a conjuntura política nacional ter absorvido as opiniões sobre o enfrentamento da pandemia, levando à presença de um segmento da população que, antes já simpática ao extremismo de direita, aderiu ao negacionismo de Estado do governo Bolsonaro.
“O discurso político do Executivo federal para a governança da crise se baseou em comunicar uma baixa severidade de risco da Covid-19, ao invés de um princípio de precaução, haja vista todas as incertezas envolvidas na situação. Observamos por parte da população a adoção de narrativas construídas sob a lógica da desinformação e com forte ancoramento ideológico, menos por veracidade e mais por pertinência”, explica.
Assim, quem concordou com o discurso de que a Covid-19 é uma “gripezinha” aderiu menos às medidas preventivas. Na outra ponta, a falta de confiança no governo pode estar relacionada a um medo maior, logo pode ter modulado um comportamento positivo empático, de cuidado, da parte de outro setor da sociedade.
Outra questão é que, como o conceito de governo foi usado em sentido amplo na pesquisa, é possível que os respondentes brasileiros tenham escolhido uma esfera específica — federal, estadual ou municipal — para apresentar suas desconfianças.
“Isso é relevante, posto que houve divergências na governança da crise, por exemplo, nas restrições de circulação e lockdown. Algumas experiências locais foram exitosas na coordenação de medidas para conter a taxa de infecção, enquanto a maioria das cidades enfrentou severas dificuldades e situações bastante dramáticas”.
Rubia também acredita que devem ter contado na desconfiança do brasileiro sobre o poder público as diferenças regionais na estruturação do Sistema Único de Saúde (SUS) e, de forma geral, a sensação de precarização que resulta do desinvestimento na saúde pública nos últimos anos, especialmente a partir de 2016 e com destaque para a saúde básica.
Empatia é estímulo à cooperação que parece independente de relação com governos
A pesquisa sugere que a empatia social tem um “forte e robusto” papel na adoção de medidas preventivas, que independe da opinião pública sobre governos. Isso significa que os fatores que levam à empatia, como o voluntariado e a participação em ações de cidadania, se estimuladas, podem vir a aumentar a colaboração em crises.
Com base em estudos já realizados, é possível apontar que, em países com grande desigualdade social, caso do Brasil, a solidariedade pode significar uma conduta pela sobrevivência de certos grupos sociais.
“Em populações vulnerabilizadas, a empatia e a solidariedade são fortalecidas em tempos de crise e adversidades, como foi na pandemia. É um recurso intrínseco humano que traz a agregação social para a sobrevivência e a manutenção da espécie”, avalia Milene Zanoni da Silva, professora do Departamento de Saúde Pública da UEPG e uma das autoras do artigo.
A insegurança alimentar e a fome no Brasil, por exemplo, escalaram durante a pandemia — segundo o Panorama Regional da Segurança Alimentar e Nutrição da América Latina e Caribe das Nações Unidas, divulgado em julho, quase 10% dos brasileiros passava por situação de insegurança alimentar severa entre 2020 e 2022.
“A crise pandêmica foi sistêmica e acentuou problemas pré-existentes. Acompanhamos o aumento da insegurança alimentar e da fome generalizada no país e acredito que não há como não ser afetado por isso”, lembra Giordani.
“Minha hipótese é de que a opção do Estado de não fazer política também foi interpretada pela população como um sinal de alerta. Vimos muitas manifestações de solidariedade especialmente em espaços sociais de fragilidade social”.
Trata-se de uma saída melhor do que incutir medo na população, outro fator motivador da cooperação na pandemia. Isso porque o medo está diretamente relacionado à queda na saúde mental da população.
A confiança no poder público também se apresenta como muito relevante, por isso a comunicação transparente é necessária para reduzir inseguranças.