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Clarissa Peixoto
Jornalista, mestra em Jornalismo pelo PPGJor/UFSC e pesquisadora do objETHOS
Na última semana, jornalistas e ativistas pelos direitos das mulheres receberam com perplexidade a notícia de que a jornalista Schirlei Alves foi condenada a um ano de prisão em regime aberto e a pagar multa R$ 400 mil em indenizações por assinar uma reportagem publicada pelo Intercept Brasil em que revelou o tratamento desrespeitoso à vítima de estupro Mariana Ferrer no julgamento em que o acusado pelo crime foi absolvido.
A situação de Schirlei é exposta em detalhes na reportagem publicada no último dia 15, também pelo Intercept Brasil, e assinada pela jornalista Cecília Olliveira com o título “Repórter é condenada a 1 ano de prisão e R$ 400 mil de multa por revelar o caso Mari Ferrer“.
Em 2019, Mariana Ferrer, influencer de 21 anos à época, manifestou nas redes sociais ter sido vítima de estupro, mobilizando ativistas e sensibilizando a opinião pública pela gravidade do crime relatado. Ferrer alega que foi dopada e estuprada dentro da casa noturna Café De La Musique, em Florianópolis, no fim de 2018. O réu, André de Camargo Aranha, foi absolvido. Uma grande comoção pública contestou o tratamento à Mariana durante o julgamento, o que rendeu uma Lei, intitulada Mari Ferrer, que acrescenta “o crime de violência institucional contra vítimas e testemunhas de infrações e crimes violentos” à Lei de Abuso de Autoridade.
No entanto, o desfecho do caso foi, no mínimo, intimidador para ativistas dos direitos das mulheres, jornalistas que denunciam situações de violência e a sociedade em geral que se sente acuada pelas relações de poder que atravessam esse tipo de crime. Na época, Schirlei e o veículo Intercept Brasil sofreram sanções pela juíza Serly Rauen Vieira, da 3ª Vara Cível de Florianópolis e foram obrigados judicialmente a editar trechos da reportagem “Julgamento de influencer Mariana Ferrer termina com tese inédita de ‘estupro culposo’ e advogado humilhando jovem“.
Com novos desdobramentos, Schirlei acaba de ser condenada pela juíza Andrea Cristina Rodrigues Studer, da 5ª Vara Criminal de Florianópolis, pelo crime de difamação. Os processos criminais foram movidos pelo juiz Rudson Marcos e pelo promotor Thiago Carriço de Oliveira. Marcos recebeu uma advertência – a penalidade mais branda, vale ressaltar – do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na semana passada, por sua omissão na condução da audiência de Mariana Ferrer.
Diversas entidades da sociedade civil e as de representação profissional de jornalistas manifestaram apoio à jornalista e ao veículo, alegando grande prejuízo para a liberdade de expressão e imprensa, assim como ao enfrentamento às injustiças e às violências, fundamento basilar da ética e da prática jornalísticas.
Em nota, a Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj) destaca que “o jornalismo é elemento essencial para garantir o escrutínio de agentes públicos. Os fatos revelados pela reportagem de Schirlei Alves não caracterizam ataques à honra do promotor e do juiz envolvidos, mas sim o direito da imprensa de informar e o dever do agente público de prestar contas”.
Para Schirlei, o sentimento é de injustiça. “Estou sendo punida por ter feito o meu trabalho como jornalista, por ter revelado ao público um absurdo de poder cometido pelo judiciário. Essa decisão me parece uma tentativa de intimidação, de silenciamento não só da minha pessoa, mas de outros jornalistas que cobrem o judiciário e fazem um jornalismo investigativo, fiscalizador e de denúncia”, desabafa a jornalista.
O advogado do The Intercept Brasil, Rafael Fagundes, reforça que “a sentença ignorou a realidade dos fatos e a prova dos autos, resultando em uma decisão flagrantemente arbitrária e ilegal. Além disso, a sentença cometeu uma série de erros jurídicos primários, agravando artificialmente a condenação e contrariando toda a jurisprudência brasileira sobre o tema”.
O advogado ainda afirma que a sentença não esconde “preocupações corporativistas” e pode reverberar como uma ameaça a quem denuncia abusos eventuais cometidos pelo Poder Judiciário.
Jornalismo e direitos humanos
A cobertura e a apuração de casos de abuso e violências são sempre uma tarefa que exige muito dos e das jornalistas. Nesse exercício, abre-se um universo de desafios quase intransponíveis que podem chegar ao limite, como o caso de Schirlei Alves.
Além do impacto emocional para jornalistas ao reportar pautas dessa natureza, há uma série de riscos que vão desde dificuldades no acesso a fontes e informações, até intimidações, ameaças e processos judiciais. Esse nosso universo profissional está exposto a pessoas e agentes públicos que se sentem no direito de abusar, violar e ultrapassar os limites éticos, e até mesmo judiciais, porque estão calcados em privilégios milenares que sustentam relações de poder.
Combater desigualdades e violências é sempre se colocar em “cabo de guerra” com quem está acostumado a ganhar sob as condições mais improváveis. Se levarmos em consideração que numa sociedade patriarcal as mulheres estão em situação de desigualdade com homens, defender os direitos das mulheres é indispensável para a garantia de direitos humanos. Porém, isso que parece tão óbvio para o jornalismo pode gerar desgastes impensáveis para a saúde de jornalistas e prejuízos irrecuperáveis para toda a sociedade quando silenciado.
Nós, mulheres, somos vítimas de todo tipo de violência, as estatísticas não mentem. Mais uma delas é esta que sofremos nós, jornalistas que se propõem a esse tipo de cobertura, com as tentativas de nos silenciar com base nas regras de homens poderosos.
No entanto, se cabe ao jornalismo, pela força da instituição pública que tem, denunciar os abusos sobre os direitos humanos, recai também sobre ele o peso de se colocar ao lado de quem tem menos condições de defesa e, portanto, gerar uma relação mais equânime entre as partes envolvidas.
Nesse sentido, Schirlei e Intercept Brasil estão pagando um preço injusto precisamente por se colocarem como agentes da garantia de equidade entre o Estado, o poder econômico e o político, que silenciaram diante uma jovem que vivenciou uma violência grave. Se quisermos enfrentar o machismo e a misoginia, precisamos dar condições de igualdade para as vozes que se rebelam contra a violência de gênero. Esse é o papel do jornalismo e que precisa ser garantido pelos demais entes, tanto da sociedade civil como do Estado.
A ética jornalística passa por estabelecer relações de equidade e equivalências razoáveis. Sem elas, a objetividade e imparcialidade não passam de abstrações sem fundamento. Jornalistas precisam ser equânimes, estabelecer critérios que não subjugam pela força política, econômica, cultural ou social, pessoas e entidades envolvidas em determinada situação. E, principalmente, precisam se manifestar quando há injustiças.
Essas premissas também valem para o Judiciário, ambiente em que, muitas vezes, o discurso da imparcialidade ressoa opostamente, como uma sobreposição de quem tem mais força sobre quem tem menos privilégios. O jornalismo deve estar sempre atento para equilibrar a balança com equivalências justas e criteriosas, tal qual o Judiciário tem como função.
Quando isso não ocorre, podemos dizer que nossos esforços como jornalistas para elevar os discursos em defesa das mulheres e de outras pautas sociais estão submetidos a uma mordaça que fere a ética jornalística e os direitos humanos.
O que vemos neste lamentável episódio é a limitação da liberdade de expressão e de imprensa em detrimento de algum corporativismo, como destaca a reportagem de Cecília Olliveira. Isso apequena nosso trabalho, desestimula nossa coragem e autoestima como profissionais e qualquer vislumbre de mudança desse status opressor se desmancha no ar.
O que as entidades de direitos humanos, movimentos sociais que defendem as causas feministas e quem luta por uma sociedade justa esperam é que as instâncias superiores do Poder Judiciário reformem essa decisão, que atenta contra a liberdade de expressão como um direito humano fundamental, e a liberdade de imprensa como pedra angular de uma sociedade que se pretenda democrática.