Publicado originalmente em ObjETHOS. Para acessar, clique aqui.
Dairan Paul
Doutorando em Jornalismo (PPGJOR/UFSC) e pesquisador do objETHOS
Neste comentário, exploro três explicações para o consumo das fake news: os pressupostos de confiança, a lógica da autenticidade/performatividade e a infraestrutura digital que moldam as redes sociais. Recorro principalmente a três pesquisadores para formular meu raciocínio: Alexandre Meyer Luz (Filosofia/UFSC), Igor Sacramento (Comunicação/UFRJ) e Letícia Cesarino (Antropologia/UFSC).
Meyer é crítico à linha mais tradicional da Epistemologia devido à sua idealização sobre tomadas de decisões dos sujeitos. Para o consumo de fake news, esta é uma perspectiva interessante. Porque nos lembra que nem todos aqueles que acreditam nas notícias falaciosas o fazem pela falta de um “arsenal crítico” para discernir a qualidade de uma informação.
Há mais nuances. Em entrevista para o Núcleo de Apoio à Divulgação Científica da UFSC, Meyer comenta que nem todas as pessoas têm tempo (ou mesmo vontade) de ser um Sherlock Holmes que investiga a origem de toda história que recebe. Segundo dados da TIC Domicílios 2022, quase metade dos brasileiros não verifica se uma informação encontrada na internet é verdadeira. O número dos que checam é ainda menor entre usuários cujo acesso à rede se dá apenas por celular. Já as principais fontes de informação são WhatsApp e YouTube – emissoras de TV aberta e sites de jornais estão atrás, indica o Digital News Report 2023.
Em outras palavras nem todos querem ser jornalistas. É claro que o letramento midiático é uma saída para isto – preferencialmente, que seja ensinado desde as bases escolares. O que Meyer quer dizer é que há mais ingredientes para explicar por que concedemos maior ou menor crédito a determinados informantes.
O desejo de pertencimento a um grupo social pode ser um deles. E a confiança também. Uma delas é aquela construída ao longo de uma trajetória de vida com parentes próximos (pais) ou figuras de autoridade (amigos de infância, políticos).
“Alguém compraria a história da ‘mamadeira de piroca’ olhando apenas para a informação?”, questiona Meyer. “Pessoas compram porque estão em contextos de confiança previamente concedidos. Você tem um caldo de fake news que ataca em blocos: a preocupação com o comunismo, o risco para a sexualidade das crianças, etc. Elas dependem dessas relações para se espalhar”.
Informantes também podem ser avaliados negativamente, isto é, vistos como menos confiáveis, por mecanismos sociais (racismo, machismo e LGBTfobia). É o fenômeno que Meyer denomina de “injustiça epistêmica”, a partir da filósofa Miranda Fricker.
Dois exemplos ilustram o conceito. Em junho de 2023, na Bahia, uma paciente teria dito que “odiava ser atendida por um médico homossexual”. No Rio de Janeiro, em 2016, teve repercussão nacional o caso de um paciente que recusou atendimento por um médico negro.
Injustiças epistêmicas, portanto, são situações pelas quais passam grupos que são vistos, injustamente, como menos capazes de fornecer informação de boa qualidade. Pretas, mulheres e LGBTs tendem a ser os principais vitimizados, afirma Meyer.
Quanto mais “autêntico”, mais confiável?
Além dos pressupostos de confiança que atribuem maior ou menor credibilidade a um informante, outros dois fatores contribuem para o consumo de fake news: a associação da autenticidade à verdade e a infraestrutura digital que incentiva a circulação das mentiras.
No que tange ao primeiro ponto, Igor Sacramento, professor de Comunicação (UFRJ/Fiocruz), realizou pesquisas junto a pessoas que evitavam tomar vacinas contra a febre amarela, em um período anterior à pandemia de Covid. Seus achados destacam dois valores cruciais para a atribuição de mais confiança a determinadas fontes de informação: intimidade e autenticidade.
Áudios de Whatsapp circularam à época das mentiras sobre como a vacina afetava o cotidiano das famílias, simulando revelações de sofrimento – uma performance de verdade, portanto, o que, paradoxalmente, é lido como “autêntico” por quem a consome. Por isso, a verdade não é mais uma evidência, mas uma experiência, um testemunho, mesmo que encenados.
“No Brasil, temos desafios tão grandes, como a alfabetização, que não tem como culpar o consumo de fake news sem considerar o enorme contingente de pessoas analfabetas”, afirmou Sacramento, em entrevista para o objETHOS. “E também pessoas que precisam acreditar – porque as fake news têm uma dimensão de levar tanto pavor como conforto, constituindo grupos ou comunidades em torno de teorias conspiratórias, por exemplo. Elas podem produzir um conjunto de explicações para aquilo que não é explicado, como ‘quando vamos sair da quarentena’ ou ‘quando a Covid vai acabar’. Uma postura negacionista de que é só uma gripezinha também produz certo conforto para a total incerteza sobre a vacina”.
Finalizo meu comentário recorrendo ao último fator que considero relevante para entendermos o consumo de fake news: a estrutura que permite a circulação e o disparo em massa deste tipo de conteúdo. Em O mundo do avesso: verdade e política na era digital, a antropóloga Letícia Cesarino reúne um farto arcabouço teórico para propor novas explicações sobre o tema a partir da teoria da cibernética. Sem receio, Cesarino afirma “a atual infraestrutura das novas mídias possui um viés político, e esse viés é favorável à direita iliberal, aos conspiracionismos e às demais forças antiestruturais que ressoam em seu entorno” (p. 87-88).
Em suma, uma das chaves explicativas para o consumo de fake news seria o colapso de contexto, propriedade transversal à infraestrutura técnica das novas mídias que incide sobre a experiência dos indivíduos, “desestruturando” a “metacomunicação” das sociedades. Inclui-se, aí, um impacto na episteme social de modo que “verdades são performativamente reveladas a posteriori (…) e verdade passa a ser ‘o que quer que venda’ (…) – para cada nicho de mercado, uma verdade” (p. 112).
Entendo, portanto, que há uma convergência de fatores que explicam por que pessoas consomem e acreditam em notícias falsas. Os argumentos elencados aqui vão na contramão de uma leitura que associaria a mera ignorância àqueles que “caem” nas fake news. Há uma estrutura própria favorável à circulação deste conteúdo; há pressupostos de confiança que subvertem a valoração do que viria a ser um “bom informante”; e há atributos como intimidade e autenticidade responsáveis por deslocar a epistemologia de seu lugar de evidência para o de testemunho – uma “eu-pistemologia”.