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Artigo | Vitória Ravazio Pais, mestranda em Literatura, parte de referências históricas para refletir sobre o que torna diferentes ou não obras escritas por mulheres
*Por: Vitória Ravazio Pais
*Ilustração: Dantara Stamado Ordovás/IA-UFRGS
Muito se discute a respeito da pertinência da expressão “literatura feminina”, sendo que a maior parte das envolvidas, mulheres escritoras e leitoras, prefere utilizar a denominação “literatura de autoria feminina” ou, ainda, “literatura feita por mulheres”. Mas há também quem recuse qualquer predicativo, alegando que a qualificação de “feminina” ou “de mulheres” seria uma forma de subscrever essa literatura como uma literatura menor ou uma literatura de nicho. Desse ponto de vista, em contraposição à literatura feminina estaria a Literatura Universal, a verdadeira forma de expressão artística que trata das grandes questões humanas e na qual também está implicado, não podemos negar, o sujeito universal, com todos os marcadores possíveis de privilégio.
Mas a pergunta é: afinal, existe ou não alguma diferença objetiva entre a escrita dos homens e das mulheres? Minha opinião é de que não existe tema essencialmente feminino ou masculino. É óbvio que uma mulher pode escrever a partir de personagens e temas supostamente masculinos e ser bem-sucedida, e vice-versa. Para citar apenas um exemplo, particularmente surpreendente para mim, contra todas as expectativas de um erotismo feminino terno e romântico, O Caderno Rosa de Lory Lamby foi escrito por uma mulher e da forma mais explícita, obscena e impactante pela qual se poderia conceber uma literatura desse gênero.
No entanto, também me parece verdade que existem certas perspectivas predominantemente femininas e masculinas. As personagens de Jane Austen falavam sobre relações privadas e encontravam-se quase sempre em ambientes fechados, porque era isso que a própria Austen melhor conhecia. Já na literatura escrita por homens são muito menos frequentes narrativas que se passem quase inteiramente no ambiente doméstico.
Não existe literatura essencialmente feminina ou masculina porque, afinal, também não existe uma essência feminina ou masculina. Mas o que existe, sim, são as marcas da experiência e das visões de mundo de quem escreve. É o corpo e as memórias marcadas nesse corpo que se manifestam nas palavras.
É bem possível que Virgínia Woolf não tivesse criado as perspicazes donas de casa que protagonizaram alguns de seus livros não fosse o interesse pessoal em revelar os mecanismos de opressão que sentia na própria pele.
Como sabemos, o cânone literário, majoritariamente, não foi feito por mulheres, tampouco de mulheres. Além disso, a famosa pesquisa de Regina Delcastagné é inequívoca ao revelar que os protagonistas dos romances brasileiros são predominantemente parte dos diversos grupos sociais privilegiados. Isso não revela necessariamente uma culpa dos escritores, mas, sim, que o mercado editorial continua sendo excludente e que os escritores contemplados, sendo geralmente eles mesmos sujeitos universais, criam personagens à sua imagem e semelhança.
Diante desse cenário, muitas escritoras feministas têm se perguntado: se não fomos nós que criamos o cânone e sempre estivemos dele excluídas, por que deveríamos, pra início de conversa, respeitá-lo? Não indo tão longe, acredito que beber dos clássicos seja, sim, importante, pois ainda que os marcadores sociais sempre estejam presentes na escrita, a boa literatura é aquela que tem algo de sensível a todos nós. Mas, não podemos esquecer, como demonstra uma porção de estudos feministas, de que nesses livros a mulher, muito mais frequentemente do que poderíamos considerar coincidência, é representada de forma redutora e dualista como a santa ou a femme fatale, como Eva ou Maria. E nós, é claro, somos bem mais complexas do que isso.
Não podemos apagar essa história e tampouco creio que devemos rejeitar tudo o que foi feito até aqui. Precisamos, isso sim, é repovoar o imaginário social de novas personagens, novas formas de ser mulher e de se estar no mundo. Porque a tendência, porquanto vivemos em uma estrutura social machista, é reproduzirmos padrões masculinos pelo simples fato de serem eles os nossos parâmetros de escrita.
A escritora Sheyla Smanioto conta que, quando começou sua carreira, ela era um homem que morava no Centro de São Paulo e caminhava para comprar cigarros. Ela não fuma e sempre morou em periferias, mas quando escrevia tinha esse narrador que grudava nela, um personagem que ela teve que matar aos poucos no processo de descobrir quem era como escritora, por que escrevia e para quem suas palavras se desdobravam.
Assim, o que importa para nós nesse cenário excludente é a reivindicação da nossa própria experiência no mundo como algo integralmente relevante enquanto tema e forma literária. Nesse processo, devemos estar atentas para não reproduzirmos padrões dominantes que nos são totalmente alheios. Isso exige, é claro, um trabalho de vigilância de nossa própria escrita e um desprendimento em relação ao que se espera de nós. Não é tão fácil assim, mas é o único caminho para conquistarmos vozes e estilos próprios, e não sermos a mera semelhança daquilo que vem sendo produzido pelos homens há séculos.