Liberdade de expressão: Brasil tem elevado nível de insegurança jurídica, diz jurista

Publicado originalmente em Instituto Palavra Aberta. Para acessar, clique aqui.

O Brasil convive ainda com um nível exagerado de insegurança jurídica, diz o advogado Gustavo Binenbojm, professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em entrevista ao site do Instituto Palavra Aberta. “É um país ainda em desenvolvimento que ainda não consolidou de maneira estável a sua jurisprudência a respeito da liberdade de expressão. Isso permite um certo casuísmo nas decisões que variam em casos muito semelhantes, o que é indesejável em qualquer estado democrático de direito”, completa o jurista.

Leia abaixo a entrevista na íntegra.

Instituto Palavra Aberta – O Supremo Tribunal Federal (STF) recentemente manteve por 9 votos a 2 uma condenação do contra o jornal Diário de Pernambuco em processo movido pelo ex-deputado Ricardo Zarattini Filho, já falecido, devido a uma entrevista na qual o delegado Wandenkolk Wanderley, também já falecido, dizia que Zarattini tinha participado do atentado a bomba no Aeroporto dos Guararapes, de Recife, em 1966. Esta decisão pode mudar os conceitos de liberdade de imprensa no Brasil?

Gustavo Binenbojm – A decisão do STF em relação ao Diário de Pernambuco ainda não foi concluída. O STF tem ainda de decidir sobre a tese jurídica aplicável ao caso. Eu tenho a expectativa de que o Supremo adote posição sobre responsabilidade dos veículos de imprensa que foi consagrada no caso do The New York Times vs Sullivan, pela Suprema Corte dos Estados Unidos, em 1964, na qual se estabeleceram os dois grandes parâmetros universais que definem quando o veículo é responsável. O primeiro é a existência de ‘actual malice’ ou dolo direto, ou seja, uma intenção deliberada de publicar uma notícia que se sabe de antemão inverídica com o objetivo de causar danos a terceiros. E o segundo parâmetro é, mesmo quando não houver dolo, quando não houver a ‘actual malice’, que se possa verificar a existência de uma culpa grave do veículo que em inglês se traduziria “Reckless desregard of falsity’, ou seja uma apuração negligente por parte do veículo de imprensa que tivesse resultado, por força dessa culpa grave, na publicação de uma notícia inverídica causadora de danos a terceiros. Fora dessas hipóteses, os veículos de imprensa devem gozar de ampla imunidade, proteção, por que o jogo da apuração é realizado no curso dos fatos. Quem trabalha com hard news sabe que as verdades são sempre provisórias e a verificação da existência do dolo direto ou da culpa grave que devem ocasionar responsabilização dos veículos. Se não houver uma hipótese ou outra, em cada caso concreto, o Poder Judiciário deve absolver os veículos, ainda que a notícia depois não venha a ser confirmada, porque é necessário para a sociedade se informar que haja este espaço de atuação no transcurso dos acontecimentos dos órgão de imprensa e não haja uma responsabilização objetiva por simples publicação de notícias que não venham a ser confirmadas já que isso certamente pode produzir um efeito silenciador, um efeito inibidor sobre os veículos quanto à publicação de fatos cuja apuração não tenha sido confirmada definitivamente pelas autoridades policiais, pelo poder judiciário até o julgamento final de casos envolvendo fatos alegadamente ilícitos.

Instituto Palavra Aberta – Em seu livro “O rabino do mundo”, o senhor cita várias vezes a defesa das liberdades e da democracia. As liberdades, entre elas e de expressão, estão ameaçadas no Brasil?

Gustavo Binenbojm – A questão da ameaça à democracia e as liberdades fundamentais no Brasil e no mundo me parece evidentemente afirmativa: existe de fato movimento que varia de país para país, em intensidade, natureza, mas uma ameaça às instituições democráticas e, por conseguinte, à própria liberdade individual. Esse movimento no Brasil é multiforme. O mais evidente foi o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, que tinha objeções muito sérias às instituições democráticas, ao funcionamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, mas que não logrou alcançar reeleição, mas há outras questões também, ameaças físicas a jornalistas, a questão do cancelamento nas redes digitais, as campanhas de desinformação que são conduzidas nas redes sociais e que também atingem o funcionamento da democracia e colocam em risco as liberdades individuais.


Instituto Palavra Aberta –
 A legislação brasileira estabelece limites a liberdades. Em boa parte da opinião popular, entretanto, esses limites foram colocados em uma área cinzenta de forma a confundir sua interpretação. Por que há espaço para esse tipo de distorção em pleno século XXI?

Gustavo Binenbojm – Os limites entre liberdade de expressão e a proteção da honra, da privacidade, da intimidade das pessoas, dos dados pessoais e a proteção da própria democracia contra discursos de incitação à violência e ao ódio e proteção de minorias são uma questão que envolve fronteiras nem sempre claramente delimitadas, e esse não é um fenômeno puramente brasileiro. Num quadro comparativo, nos Estados Unidos há uma maior proteção da liberdade de expressão por força da interpretação dada à primeira emenda da constituição norte-americana pela Suprema Corte, embora não se possa dizer que a liberdade de expressão lá seja um direito absoluto. Há situações de proteção à segurança nacional, do imperioso interesse público que justificam limitações, inclusive contra de discursos de ódio que são majoritariamente permitidos. Também há situações em que havendo um perigo real iminente, presente, a liberdade de expressão também pode ser limitada. Mas por outro lado do outro lado do atlântico, na maior parte dos países da Europa Continental essa proteção é mais intensa sobre os direitos da personalidade. A honra, a imagem, a intimidade, a privacidade têm uma proteção maior e consequentemente uma maior restrição imposta a liberdade de expressão. O que acontece no Brasil, no entanto, é um nível exagerado de insegurança jurídica. É um país ainda em desenvolvimento que ainda não consolidou de maneira estável a sua jurisprudência a respeito da liberdade de expressão. Isso permite um certo casuísmo nas decisões que variam em casos muito semelhantes, o que é indesejável em qualquer estado democrático de direito.


Instituto Palavra Aberta –
 Como a Justiça brasileira pode contribuir para combater esse cenário?

Gustavo Binenbojm – O papel da Justiça é sempre o de produzir segurança jurídica. Aplicar a constituição da maneira mais correta e literal possível, sem variar no que se refere a casos semelhantes, mas é natural que haja uma adaptabilidade, uma distinção de casos diferentes o que levará certamente a interpretações também diferentes, mas o que me parece é que o poder Judiciário tem que buscar como um ideal a ser alcançado a estabilização da sua jurisprudência e a criação de case law de coerência e consistência ao longo do tempo.


Instituto Palavra Aberta –
 É necessário implantar no Brasil uma educação para a democracia? Como?

Gustavo Binenbojm – Acho que sim. A educação para a democracia é algo que deve permear a formação da cidadania de maneira mais geral. E qualquer sociedade civilizada, em diversos países, o ensino do direito que interessa mais diretamente a cidadania, o direito constitucional, os direitos civis, os direitos individuais, políticos e sociais são ensinados para estudantes de ensino médio e cursos que não tem o direito como objeto técnico de estudo, mas que fazem parte da formação de qualquer cidadão. Eu acho que introduzir isso no currículo escolar e criar uma cultura de cidadania ligada à defesa da democracia, das liberdades fundamentais dos cidadãos é tão importante, tão essencial quanto o próprio funcionamento das instituições democráticas. No fundo a estabilidade do regime não se garante com canhões e armas nas ruas, mas com cidadãos engajados e conscientes da necessidade de defenderem a democracia como uma parte do patrimônio público, como um bem da própria sociedade.

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