Literatura infantil, imigração e alfabetização

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Artigo | A doutoranda em Educação Jeruza Santos Nobre reflete sobre ‘formatos de livros para crianças que sejam mais inclusivos e que promovam a reflexão’ e apresenta uma obra elaborada a partir dessa perspectiva

*Por Jeruza Santos Nobre
*Ilustração: Priscila Zavadil/IA-UFRGS

A literatura é um direito universal, porém dados recentes indicam que a alfabetização entre crianças, adolescentes e adultos enfrenta obstáculos significativos. Para combater esse problema, reconhece-se o potencial dos livros como uma oportunidade para despertar o prazer pela leitura em crianças e jovens, desde que sejam adequados ao público-alvo. Segundo o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes – PISA, apenas 24% dos alunos até 15 anos atingiram o nível mínimo de proficiência em leitura, ou seja, a capacidade de compreender e extrair informações explícitas de um texto. Isso destaca a importância do conteúdo textual para a alfabetização e levanta questionamentos sobre os tipos e formatos de textos disponibilizados para as crianças.

Nesse contexto, o livro infantil desempenha um papel fundamental na introdução das crianças ao mundo da escrita, familiarizando-as com histórias, narrativas, contos e elementos culturais presentes na literatura infantil.

Surge, então, a pergunta: quais são os livros infantis oferecidos às crianças em processo de alfabetização que vivenciam a imigração? Afinal, se crianças que já possuem habilidades orais sólidas enfrentam dificuldades na alfabetização, como podemos esperar que esse processo seja bem-sucedido em crianças que não dominam o idioma?

É importante ressaltar que o conceito de migração não é simples, mas pode ser compreendido como um fenômeno que envolve duas perspectivas: a de quem parte, o emigrante, e a de quem chega, o imigrante. Nesse contexto, estamos nos referindo especificamente à criança imigrante.

Assim, o livro infantil adquire uma dupla função: além de proporcionar prazer, também desempenha o papel de apresentar o novo idioma àqueles que chegam. Ele é um dispositivo composto por imagens e palavras, no qual os verbos se transformam em imagens ao longo da narrativa, e as imagens se tornam verbos. No mercado editorial, encontramos livros ilustrados que dispensam palavras, mas que, a cada ilustração, revelam uma narrativa. Há também livros em que a ilustração não é apenas uma descrição do texto, mas um elemento adicional que, juntamente com as palavras, compõe o significado do livro infantil, encantando os olhos das crianças ao se identificarem com os personagens, tentando reproduzir o que viram ou simplesmente folheando o livro. “Leem” as ilustrações mesmo antes de serem alfabetizadas.

Diante da importância de um livro que sirva como ponte para o acesso à língua portuguesa por parte das crianças imigrantes e que também possa apoiar a relação entre os colegas na sala de aula, foi desenvolvida durante meu mestrado a dissertação O livro infantil em CAA : intersecções entre língua familiar e língua de acolhimento. Nessa perspectiva foi criada a proposta do livro Jean e a festa entre culturas. Essa obra utiliza recursos de escrita simplificada, acompanhados por componentes de Comunicação Alternativa (CA) com o uso de pictogramas, e possui formato bilíngue. Quando a língua falha, há o símbolo.

Dessa forma, crianças que ainda não estão alfabetizadas têm um novo recurso para acessar esse material tradicional da cultura escrita, enquanto crianças alfabetizadas em outros idiomas podem naturalmente utilizar esse material como uma ponte para aprender a nova língua. Além disso, o formato bilíngue permite que elas apresentem seu idioma a seus colegas. Nenhuma língua se sobrepõe à outra, mas, juntas, possibilitam a inclusão e a eliminação da barreira linguística na sala de aula.

A produção desse livro infantil proporcionou diretrizes importantes para a criação de obras destinadas a crianças em idade escolar inicial brasileiras ou imigrantes: frases e parágrafos curtos, uso frequente do sujeito nas frases, ordem direta das palavras e vocabulário adequado ao público-alvo. Além disso, a simbolização de todas as palavras do texto revelou-se crucial, uma vez que esses símbolos permitem o acesso à leitura. Também são relevantes o uso de pictogramas em preto e branco para evitar a poluição visual e o posicionamento da escrita acima do símbolo, para que, ao apontar o dedo, o aluno não cubra a palavra. São escolhas aparentemente simples mas que demandam reflexão e análise, levando-nos a questionar: para quem estamos produzindo esse material? E a resposta encontrada nessa pesquisa é: para todos.


Jeruza Santos Nobre é pedagoga, psicopedagoga escolar, mestra na linha Educação Especial, Saúde e Processos Inclusivos e doutoranda em Educação na linha Educação, culturas e humanidades do PPG em Educação. Pesquisa educação e acessibilidade, com ênfase em Comunicação Aumentativa e Alternativa e Processos migratórios, e atua como professora do ensino fundamental no município de Gravataí-RS.

A obra Jean e a festa entre culturas foi realizada no âmbito do projeto Multi.


“As manifestações expressas neste veículo não representam obrigatoriamente o posicionamento da UFRGS como um todo.”

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