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Artigo | Karolayne da Cunha Gonsalves, Ana Paula Ranzi e Kátia Rodrigues da Silva, pós-graduandas em Sociologia, analisam a realidade das mulheres no ambiente acadêmico e examinam iniciativas surgidas na UFRGS
*Por Karolayne da Cunha Gonsalves, Ana Paula Ranzi e Kátia Rodrigues da Silva
*Ilustração: Mariana Lemmertz/IA-UFRGS
Neste ano, o debate sobre assédio no ambiente universitário foi reacendido em função das denúncias feitas contra um importante intelectual de renome internacional, o que deu voz a uma série de vítimas de assédios sexual e moral, bem como a relatos de apropriação intelectual. Elas não citam nomes devido ao medo de represálias, mas narram que se calaram, pois necessitavam de aprovação acadêmica para construir suas carreiras como pesquisadoras.
O cenário não é diferente no universo acadêmico brasileiro. As relações entre professores e alunes são alinhavadas por dinâmicas de poder calcadas em uma série de marcadores sociais que oprimem e silenciam. Neste texto, buscamos discutir como opera o marcador de gênero dentro da Universidade e os limites dos canais de denúncia e acolhimento dessas instituições. Com isso, queremos abrir diálogos que possibilitem fortalecer a voz das vítimas em um sistema universitário ainda fundamentado na misoginia.
Para contextualizar a dimensão de gênero, nos voltamos para o debate levantado por Joan Scott no artigo Gênero: uma categoria útil de análise histórica, em que afirma que as desigualdades em geral estão condicionadas a algo maior que o indivíduo, como os universos socioculturais, determinados por leis, regras e simbologias. A autora entende que, dentro dos processos e estruturas sociais, existe um espaço de agência humana em que se constroem as identidades, os relacionamentos, a linguagem e, por fim, a própria vida.
Nesse curso, a ideia binária de gênero, baseada no sexo do indivíduo, seria desenvolvida e reproduzida por meio da inserção cultural, da educação e da imposição de normas. Nesse sentido, “gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder”, sobretudo na cultura ocidental e nas tradições judaico-cristãs e islâmicas.
Inserido nessa relação de poder, o gênero nasce a partir de quatro elementos inter-relacionados: (a) símbolos culturais; (b) conceitos normativos que expressam os significados desses símbolos; (c) concepção política, das instituições e da organização social; e (d) identidade subjetiva.
Ao deslocar esse debate para o ambiente universitário, percebe-se que as relações de poder aparecem de inúmeras formas, como no vácuo de mulheres em determinadas áreas e em produções acadêmicas (símbolos e seus significados), nas dificuldades que atravessam as docentes durante a maternidade (concepções políticas) e a normalização do assédio sexual e moral a que as alunas são submetidas para alavancar suas carreiras enquanto mulheres (identidade subjetiva). A realidade só se agrava ao analisar esse cenário de forma interseccional, em que a ausência de mulheres pretas e trans nesse espaço reflete um ambiente conservador.
Nesse mesmo sentido, é preciso lembrar que a discussão de gênero é uma bandeira política e histórica levantada pelos movimentos feministas a fim de mobilizar o Estado e as instituições para que se construam mecanismos de proteção e combate à violência e às desigualdades. Esse, entretanto, é um campo de lutas discursivas e de poder em que interesses, direitos, identidades, categorias e relações sociais são constantemente legitimados e reconstruídos.
Nesse campo de disputas, vemos que as recentes denúncias de assédio na universidade trazem à tona a urgência do debate e da fiscalização. A construção de espaços de acolhimento e de discussão sobre o tema, porém, ainda é muito recente e enfrenta a falta de recursos e de servidores capacitados para lidar com essa problemática.
Assim, surge um espaço em que as demandas são absorvidas de forma sempre parcial, geralmente se organizando a partir dos aspectos mais digeríveis e fáceis de tratar, e deixando em segundo plano a discussão central sobre as relações de poder na universidade, fundamental para que o debate possa avançar, mas difícil de ecoar em uma instituição em que os espaços de autoridade ainda sejam majoritariamente ocupados por pessoas que perpetuam uma cultura de trabalho que hoje é inaceitável.
Retomando essa discussão, há posicionamentos de instituições e uma disputa pública por versões sobre o caso. Vemos, assim, de forma transparente, as relações de poder e os campos de disputa dentro das universidades. O que torna o caso ainda mais vil dentro dessa narrativa é vermos essas práticas a partir de alguém que ganhou notoriedade acadêmica por debater temas como direitos humanos, relações de poder Norte-Sul, movimentos sociais e democracia.
Talvez a propulsão da sua trajetória tenha justamente sido possível mediante a apropriação das ideias das mulheres que foram invisibilizadas e exploradas no seu caminho. O que dizemos umas às outras é que devemos estar sempre atentas, mas estar sempre vigilante é exaustivo e demanda uma imensa carga de energia que poderia estar sendo aplicada em debate e pesquisa.
Por isso precisamos incentivar a construção de redes mais horizontais, dentro das universidades, que dialoguem com temas de saúde mental, que acolham relatos de assédio com a devida seriedade e que discutam não só relações de poder atravessadas por gênero, mas também por sexualidade, raça e classe social. Só assim construiremos uma comunidade universitária em que todas as pessoas se sintam valorizadas e pertencentes.
Os caminhos da UFRGS
Apesar das limitações levantadas, o controle social e os órgãos de vigilância ainda são essenciais para a construção de ambientes mais seguros e acolhedores para as mulheres. Nos últimos anos, percebemos um aumento das denúncias e das discussões sobre assédios no ambiente da Universidade, o que não indica necessariamente um aumento dessas práticas, mas justamente a criação de espaços de discussão em que se pode reconhecer e repercutir a violência. Levantamos dois exemplos dentro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que são essenciais para a construção de uma Universidade mais igual.
O Núcleo Assédio Moral, Projeto de Acompanhamento e Reparação (Ampare), ativo desde 2021, foi criado a partir da capacitação “Assédio e Relações de Poder em Instituições Públicas”, em que se identificou a necessidade de um espaço de amparo, acolhimento e reparação às pessoas assediadas no ambiente universitário.
As ações do Núcleo culminaram também na aprovação, em novembro de 2022, da “Política contra o Assédio na UFRGS”, a fim de garantir o prosseguimento dos casos denunciados. O Ampare, além de fomentar a discussão sobre assédio e oferecer acolhimento às pessoas, também orienta quanto às formas de denúncia, que podem ser feitas de forma sigilosa.
Outro órgão importante de visibilidade das situações de assédio é a Comissão de Direitos Humanos e Combate a Violências Institucionais, vinculada à direção do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da UFRGS. Criada em agosto de 2022, esse espaço busca garantir acolhimento e prestar informações adequadas em casos de assédio, discriminação e violências no âmbito do referido instituto. Entre as principais atribuições da CDH estão acolher os relatos, oferecer orientações sobre possíveis encaminhamentos em casos de assédios e/ou discriminações, bem como sobre os procedimentos de cada órgão, interno e externo à universidade, além de acompanhar o processamento institucional de uma denúncia, caso ela seja formalizada em outros órgãos.
Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Avon/Data Popular em 2015, 67% das mulheres entrevistadas relataram ter sofrido algum tipo de violência (sexual, psicológica, moral ou física) praticada por um homem no ambiente universitário e 56% disseram ter sofrido assédio sexual.
Não podemos, contudo, deixar de apontar o caráter de novidade dessas iniciativas frente a uma problemática tão antiga e estrutural como as violências de gênero em nossa sociedade, mas ressaltamos a importância da criação desses espaços para fins de cuidado e reparação, bem como para problematizar as diferentes formas de assédio.
É fundamental que a comunidade acadêmica possa reconhecer essas formas de violência, viabilizar possíveis repercussões individuais e coletivas, além de fomentar discussões sobre seu caráter estrutural reproduzido nas instituições, para que as estatísticas indicadas acima alterem e as mulheres se sintam seguras na universidade.
Karolayne da Cunha Gonsalves é bacharel em Ciências Sociais, mestranda em Sociologia e integrante do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania (GPVC/UFRGS).
Ana Paula Ranzi é doutoranda em Sociologia e servidora do 1.º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca de Porto Alegre (TJRS).
Kátia Rodrigues da Silva é psicóloga especialista em Atenção Básica em Saúde Coletiva pela Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul (ESP/RS) e mestranda em Sociologia.