Publicado originalmente em Brasil de Fato por Charles Trocate. Para acessar, clique aqui.
A Amazônia é sempre planejada de fora para dentro por um observador que está prestes a sequestrar-lhe o sentido
Já se sabe que a acumulação do centro do sistema capitalista mundial é ruina na periferia. Há uma dialética desigual na troca de mercadorias: as periferias com abundância de bens naturais são as determinações para a acumulação meramente econômica no centro. A ideia de que “o capital se autorregula” em seus mecanismos – de objetificação, cientificação, precificação e empresariamento da natureza – não encontra paralelo na história humana, sendo o “progresso” o dispositivo da propriedade privada e da desigualdade.
Tudo aquilo que não vira mercadoria é desperdício de natureza. Os ciclos econômicos nacionais e internacionais nos quais a Amazônia é central lhe imputam a convivência com o conflito da privação dos seus bens naturais, sempre em função do outro alheio e externo e do contínuo desperdício, sem ter a quem reclamar.
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A descarbonização da economia mundial até 2050, proposta e levada a cabo pelos países do centro capitalista, instituem as bases de uma nova colonialidade em uma nova rodada de precificação da natureza. A transição energética para uma economia de baixo carbono ou energia limpa se assenta em minerais raros e de caráter estratégico.
Seja o plano verde europeu, seja o estadunidense, seja o chinês, todos eles, em diferentes estágios, têm a natureza Amazônica como base. E o vetor é o consumo, e não algum interesse em manipular o aquecimento global, por exemplo. De novo, o ciclo que nos perturba e nos aprisiona converte-se sempre em uso intensivo da natureza, superexploração da força de trabalho e criação de elites rentistas, dualistas e violentas. Trata-se de ciclos de crescimento econômico pela precificação da natureza de fora (o desenvolvimento do subdesenvolvimento) – para sermos justos com os predicados da teoria da dependência – em função de empregos ou subempregos, salários e consumos.
Os novos ciclos econômicos adaptam-se à moda política e intelectual, face à transgressão ecológica sistêmica do capitalismo, que, quanto “mais destrava a força de produtividade, mais desencadeia o poder de destruição”. Eles exigem que se planeje a “nova economia da Amazônia” – a partir do trinômio “mineração, agronegócio e bioeconomia” – para justificar o uso desigual dos bens finitos da Amazônia e do planeta, do sistema terra geodiverso e biodiverso.
“O capitalismo é um modo histórico de produção que, desde suas origens, surge e se constitui como tal enquanto sistema-mundo”, não apenas como economia nacional ou regional, amazônico, panamazônico. Ou seja, ainda que seja válido construir esses espaços, de pensar e agir, a solução está, em termos gerais, como o sol está para a terra. É necessária uma mudança de hábitos cujo maior esforço não recaia sobre os amazônidas em abrir concessões que não fazem sentido algum aos dilemas de outrora.
Nesse sentido, o capital enquanto modo sistêmico hegemônico na Amazônia está longe de realizar a sociedade regional em todas as suas possibilidades. Seu incremento – desigual e combinado – desloca os destinos da região a partir da acumulação primitiva, sendo o polo de estrangulamento um só, de fora para dentro. Quanto mais destrava o ritmo de extração dos bens naturais, mais torna dependentes as massas de pauperizados e mais se retroalimenta delas, mais os simplifica pelo subconsumo e, pelas mesmas razões, mais os extinguem pela escassez na temporalidade do capital.
A Amazônia, nos últimos cem anos, já foi planejada, como decisiva questão nacional e internacional – como “eixos”, “zonas” e “polos de desenvolvimento” –, sempre planejada de fora para dentro por um observador que está prestes a sequestrar-lhe o sentido.
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Mudanças necessárias
Por exemplo, não é possível mensurar o desenvolvimento amazônico, no caso brasileiro, com a manutenção da Lei Kandir e a não taxação dos superlucros das grandes minas de mineração e dos empreendimentos que usam de maneira intensiva bens naturais, geologias, água e maciços de florestas e que deturpam o significado da economia regional.
Também não é possível desenvolver a Amazônia brasileira se mantivermos a amplificação e espacialização de empreendimentos eletrointensivos e poluentes, com incentivos fiscais e baixa tributação que colapsam a arrecadação regional e a financeirização da economia (uma troca desigual) por órgãos estatais de fomento ao desenvolvimento predatório e altamente dependente de tecnologias expansivas à natureza, provocando dependência de minérios, cidades endêmicas pelo subemprego, fluxos ilícitos e falta de controle social.
Podemos dizer, assim, que há um problema imenso e desconhecido com feições inteiramente novas e regionalmente diferenciadas. Quem é alcançado por tal problema por distintas razões – sofrendo tal impacto em seu território de origem ou no mundo do trabalho – não sai ileso. Resulta em baixíssimos salários dados às pessoas que se relacionam com a infraestrutura de circulação e consumo dos bens originados a partir da ruína territorial.
Trata-se de um modelo econômico que empobrece os que possuem bens naturais para a sua reprodução social, enriquecendo aqueles que detêm o poder, a técnica, a informação e as finanças. A presença da empresa mineral no Pará e nas Amazônias produz o crescimento de rabo de cavalo, ou seja, crescemos para baixo.
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Mundo convivido
Para nós, a Amazônia não é uma concepção derradeira, um “imenso inferno verde, ou terra imatura, ou a última página da gênese a ser escrita”, como postulou Euclides da Cunha. Pelo contrário, ela é um mundo amplamente aceito, convivido, tem perfil de história, de saberes e imaginações. É desde o começo uma formação pelo conflito e um sem fim de eventos dão-lhe essa maturidade.
A Amazônia não é uma temporalidade abstrata, ela é luta de poder situada entre o moderno e o atrasado da concepção burguesa de desenvolvimento linear, de crescimento e acúmulo ao acaso do capitalismo. Desde 1992, com a realização da Eco 92 quando se introduziu a noção de “dívida ecológica”, em contraposição à “dívida externa”. No entanto, esta não é uma noção radical, é uma espécie de “ecologia da restauração”, que remete à “monetarização da natureza”, o que foi consolidada nas inúmeras conferências sobre clima e natureza até os dias de hoje.
A mineração e o agronegócio, a partir das quais a noção de desenvolvimento e progresso chega a cada um, são caros aos Amazônidas e à economia nacional. São impeditivos de uma gestão territorial das Amazônias, da transição energética que, nos seus termos atuais, significa espacializar os problemas de hoje para os próximos (Zona Franca de Manaus, Polo industrial de Barcarena, Mineração em Serra do Navio e agora a decisiva situação da descoberta de petróleo no foz do Amapá).
Tais centros não são exemplos no uso dos bens naturais e de bem-estar para a sociedade que os circunda. Trata-se de tecnicismo destrutivo que impede uma ciência intercultural e uma transição ecológica justa. As transições não podem se dar em âmbitos de negócios, mas de trocas globais – de “decrescimento econômico” nos países do centro, do “ecologismo dos pobres”, do “bem viver” de muitas e significativas tecnologias históricas de construção da floresta e dos rios e suas biodiversidades.
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Proposições
Com base nisso, apresentamos as seguintes proposições, a serem levadas em conta durante a Cúpula dos Presidentes da Amazônia: uma mesa de diálogos sobre mineração; a revisão das outorgas de uso de água, concedidas às mineradoras; a revisão do preço da energia usada pelas mineradoras, sendo esse preço progressivo em relação ao lucro das mineradoras; taxação dos superlucros das mineradoras e de outros empreendimentos instalados na Amazônia; a construção de espaços políticos de controle público do modelo mineral; uma política nacional de democratização da renda mineral – alteração, de forma continuada, da alíquota do CFEM para todos os minerais; revisão e alteração da lei Kandir e o fim de incentivos fiscais a empreendimentos na Amazônia; e a convocação de uma conferência sobre o modelo mineral brasileiro.
* Charles Trocate é membro do Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e da Via Campesina – Brasil.
** Este artigo de opinião é uma adaptação da fala proferida por Charles Trocate em 5 de agosto, durante a Plenária “Como pensar a Amazônia para o futuro a partir da ciência, tecnologia, inovação e pesquisa acadêmica e transição energética”, durante os Diálogos Amazônicos, realizados de 4 a 6 de agosto de 2023, em Belém (PA).
*** Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Chagas