Representatividade negra no Carnaval de Porto Alegre: a luta contra a invisibilidade histórica

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Gabhriel Giordani. Para acessar, clique aqui.

Patrimônio | Pesquisa de mestrado conversou com integrantes do grupo carnavalesco Afro-Sul/?d?m?de a fim de valorizar trajetórias desse espaço cultural afro-brasileiro

*Integrantes do Grupo Afro-Sul de Música e Dança participaram, antes da pandemia, do espetáculo Reminiscências – Memórias do Nosso Tempo. Realizado no Teatro Renascença, em Porto Alegre, o espetáculo foi um manifesto em defesa das reivindicações populares (Foto: Maciel Goelzer/Divulgação Afro-Sul)

Patrimônio histórico social brasileiro, o Carnaval foi datado pela primeira vez em Porto Alegre no século XIX. Muito cultuado no estado gaúcho, uma das principais características nesses eventos é a luta de escolas de samba e grupos étnicos raciais para que a identidade e a cultura negras tenham a notoriedade merecida, evitando o apagamento histórico causado por uma perspectiva predominante da branquitude. 

Entendendo a importância dessas histórias, uma dissertação de mestrado do Programa de Pós-graduação em Museologia e Patrimônio da UFRGS buscou compreender como a participação de quase meio século do Instituto Sociocultural de música e dança Afro-Sul/?d?m?de contribuiu para construção do patrimônio cultural negro na cidade.

Para isso, a pesquisadora Natália Souza, orientada pela professora Giane Vargas, conversou com nove integrantes do grupo, majoritariamente mulheres, que integram a equipe de dança e que já participaram da ala Afro-Sul. A conversa, intitulada Roda de Lembranças, visou valorizar esse espaço como um centro de referência cultural de patrimônio da cidade de Porto Alegre. 

O principal objetivo da pesquisadora foi aprofundar discussões iniciadas no trabalho de conclusão de curso sobre a trajetória do Bloco Afro-Sul ?d?m?de, destacando a importância da presença do grupo nas ruas no dia da Consciência Negra, devido ao fato de o grupo não sair nos feriados de Carnaval, mas apenas no 20 de novembro.

A ideia do Bloco Afro-Sul ?d?m?de se apresentar apenas nessa data é por causa da fusão com a extinta escola de samba Garotos da Orgia. A partir disso, o grupo se viu como um local de trabalho sociocultural de assistência, principalmente com crianças e adolescentes. Para além de um grupo de dança e música, o Afro-Sul ?d?m?de se volta menos ao Carnaval e mais ao fortalecimento da identidade negra.

Mesmo assim, no trabalho desenvolvido ainda na graduação, Natália percebeu a importância do Afro-Sul no fomento e na participação em outras escolas durante o Carnaval devido ao fato de alguns blocos do grupo integrarem variadas academias de samba nos desfiles.

Organização dos relatos da Roda de Lembranças

Para a dissertação de mestrado, Natália conduziu conversas – estruturadas como debates abertos e informais – com integrantes do grupo. Ao analisar as falas dos participantes, Natália separou-as em categorias, como “a gente se torna família”, “?d?m?de: foi no Afro-Sul que me conheci por gente”, “por si e pelos seus, é isso que dá sentido” e “Carnaval, o grande professor”.

Na primeira categoria, a museóloga destacou como as relações de vivência transcorrem para além do evento carnavalesco. Na segunda, ela relacionou as narrativas das conversas sobre infâncias e trajetórias pessoais dos integrantes. Ao seguir para a terceira, são destacados aspectos da consciência negra, da construção coletiva da memória, dos processos de identificação e representatividade. Na quarta e última, Natália analisou perspectivas de ações educativas, sejam elas a respeito do Carnaval, sejam sobre a atuação do Afro-Sul em Porto Alegre.

A museóloga destacou que seria importante que a participação dela fosse a mínima possível no debate da Roda de Lembranças, visando que as interações entre os colegas do Afro-Sul fossem desencadeando novas lembranças do grupo. 

As perguntas feitas aos participantes foram: “Conte-me sobre você e sua relação com o Afro Sul. Qual sua profissão? Qual função ocupam no Grupo ou na Instituição?”, “Quando e como chegaram ao Afro Sul?” e “O que é/ou que lugar tem o carnaval em sua vida? Como se apresentou para você?”.

“O mais marcante para mim foi justamente o relato que finaliza o capítulo de análise, que fala que o Carnaval é um grande professor”, alega a pesquisadora. “Temos diversos espaços de ensino, de vivências, e eu enxergo aqui como esse espaço de pedagogia”, finaliza.

Por ser uma pesquisadora (de etnia) branca tratando de cultura afro-brasileira, Natália ressalta que o trabalho deve ser visto como uma análise crítica à branquitude e ao fato de haver uma parte da história ‘desconhecida’, vista a invisibilidade sofrida por esses grupos. “Estou olhando para outro viés dessa mesma história”, ela relata.

Para sustentar esse argumento, Natália cita no trabalho o enredo utilizado pela Estação Primeira de Mangueira na Sapucaí em 2019, ano que a escola se sagrou campeã do desfile de Carnaval carioca com a música “História para ninar gente grande”, que menciona diversos personagens históricos pouco mencionados nos livros de história, como Dandara, Aleijadinho e Acotirene, por exemplo.

“Temos uma ideia de que Porto Alegre é um local onde os bens culturais trazem uma narrativa de uma cidade branca, de referências europeias, enquanto há fortes presenças negras e indígenas que são silenciadas, invisibilizadas na construção histórica”

Natália Souza

Segundo Natália, a pesquisa passou por vários cuidados para que ela tivesse um grande referencial de pessoas negras sobre o assunto, evitando, assim, um olhar étnico-racial branco cultural acerca do tema estudado. “Esse formato de Carnaval, com uma escola de samba desconstruindo essa história única, me fez refletir sobre a importância de que histórias negras sejam escritas por pessoas negras”, fala a autora.

Natália ressalta que os relatos obtidos dos integrantes do Afro-Sul/?d?m?de, registrados como memorialísticos em torno do Carnaval, são capazes de constituir um acervo desse evento cultural. Segundo ela, os próximos estudos irão se basear na formação desse agrupamento de lembranças do Carnaval porto-alegrense. 

Para isso, a pesquisadora diz que novas referências materiais serão necessárias, como escolas de samba, blocos ou memórias de foliões, por exemplo. “O Carnaval ainda existe em Porto Alegre, não vai deixar de existir. Mas o que ele perde todos esses anos é a referência negra e afro-gaúcha”, finaliza a museóloga. 

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