Compartilhamento de provas e conteúdos de aula na internet gera debates sobre direito autoral e formas de avaliação de alunos

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Giordano Benites Tronco. Para acessar, clique aqui.

Educação | Sites e pastas hospedadas em nuvem dão acesso a trabalhos resolvidos, resumos de aulas e PDFs de livros, prática que fere direito autoral e incomoda professores

*Foto: Marcelo Pires/JU

Para o professor de Química Inorgânica da UFRGS José Ribeiro Gregório, o vazamento de gabaritos de provas não é novidade. Há anos ele conhece as famosas “pastinhas do xerox”, deixadas por algum veterano de “boa alma” em estabelecimentos de fotocópias com os resumos das aulas e provas resolvidas.

A novidade, para José Ribeiro, é a forma e a escala tomada pelo compartilhamento não autorizado desses materiais nos últimos anos.

Hoje colegas trocam respostas de provas em grupos fechados de aplicativos. Diretórios acadêmicos mantêm pastas virtuais com fotos de provas corrigidas, devidamente organizadas por semestre, disciplina e nome do professor. E, se antes quem lucrava com essa transação eram apenas pequenos estabelecimentos de fotocópias, atualmente há um ecossistema formado por plataformas na internet (em geral, pagas) que hospedam materiais sem autorização, estudantes dispostos a desembolsar dinheiro para acessá-los e discentes dispostos a lucrar com a venda de provas e resumos.

Cada vez mais comum, a prática gera debates em várias frentes, desde a questão do direito autoral desses materiais até a forma como os professores lidam com o cenário, passando pela avaliação de aprendizado: uma prova vale como instrumento avaliativo, por exemplo, se o discente tem acesso antecipado ao gabarito?

Alunos que ajudam alunos

Não é difícil achar material compartilhado sem autorização na internet. Ele não está escondido. Ele pode ser encontrado por uma busca no Google, no Instagram de um diretório acadêmico… ou mesmo a partir de uma reportagem do Jornal da Universidade.

Em março, o JU publicou o perfil de Bruno Kalil Medeiros, egresso do curso de Economia da UFRGS e idealizador de um site cuja principal funcionalidade é servir de repositório de materiais compartilhados por estudantes.

Após a publicação da matéria, recebemos e-mails de dois professores da UFRGS – um deles, o professor José Gregório, citado no começo desta reportagem – que se disseram “chocados” ao encontrar materiais de suas disciplinas na plataforma de Bruno.

José Gregório diz não se importar em disponibilizar materiais que ajudem o aluno a estudar, mas é categórico: prova não pode.

“Não tem problema disponibilizar os materiais de aula, mas não é isso que eles, os alunos, estão interessados. Eles querem a prova para não ter que estudar”

José Ribeiro Gregório

Bruno, o idealizador da plataforma digital, soube da reação dos professores ao ser entrevistado para esta reportagem. Disse que não quer afrontar nenhum professor e se dispôs a remover qualquer material não autorizado mediante o pedido do autor. Mas ressaltou que seu site não é o único em que esse compartilhamento acontece.

E não é mesmo. De acordo com apuração do JU, ao menos cinco diretórios acadêmicos da UFRGS mantêm pastas online (drives) com algum tipo de material irregular (cópia de prova, resumo de aula, PDF de livro com direito autoral ou apresentação de slides). Todas são facilmente encontradas a partir da página do Instagram desses diretórios. Em alguns desses drives, os resumos, provas e trabalhos estão organizados por semestre, disciplina, professor e tipo de material.

O diretor de um desses diretórios acadêmicos, que não quis se identificar, sabe que essa prática é ilegal, mas compara o seu trabalho com o de um Robin Hood: nem todos os alunos têm recursos para comprar os livros, e a biblioteca da UFRGS não possui cópias em número suficiente.

O entrevistado acha que o amplo acesso aos arquivos colabora para o aprendizado. Os resumos das aulas facilitam a vida de quem tem dificuldade em prestar atenção no professor e fazer anotações ao mesmo tempo. Já a publicização de provas antigas força o professor a não repetir as questões nas avaliações dos semestres seguintes.

Mas os docentes sabem da existência dessas cópias? “Sabem, mas não fazem questão de saber”, ele explica. “Eu comento para os professores que tem um drive, mas eles não perguntam o que tem lá.”

Um negócio lucrativo

Se alguns distribuem os arquivos inspirados em Robin Hood, outros têm uma inspiração diferente: dinheiro. Existem modelos de negócio baseados em compartilhamento de propriedade intelectual acadêmica, inclusive com financiamento de empresas grandes e conhecidas.

É o caso do Passei Direto, site pertencente à Uol Edtech. Lembra muito a plataforma do já mencionado Bruno Medeiros, mas com centenas de usuários, milhares de arquivos compartilhados e um sistema de comunidades de interesse semelhante aos grupos do Facebook. O usuário se inscreve no site, paga uma taxa – a partir de R$ 19,90 por mês à época da redação desta matéria – e tem acesso a provas, slides e resumos das mais variadas disciplinas, oriundas de diferentes universidades, escolas e fundações organizadoras de concursos públicos.

Quem abastece o site com conteúdo, porém, não são essas instituições, mas sim os próprios usuários, que podem até mesmo se tornar “produtores verificados” e ganhar dinheiro com os seus envios. Materiais autorais, ali, são a exceção.

O Passei Direto não é o único site desse tipo. Outras redes, a maioria delas pagas, operam do mesmo jeito. A própria Fokvs, de Bruno Medeiros – até agora gratuita –, espalhou cartazes pela UFRGS convidando alunos a “monetizar” provas e trabalhos antigos por meio do site. Bruno diz que é uma estratégia para aumentar a base de usuários do site e que não está ganhando nada com os materiais – alega que, pelo contrário, está pagando do próprio bolso a recompensa dos usuários.

A proteção do direito autoral

Todas essas plataformas de compartilhamento de materiais têm o cuidado de ressaltar, em seus termos de uso, que são apenas intermediárias na troca de arquivos entre usuários. Ou seja: se há uma ilegalidade sendo cometida, isso é responsabilidade de quem fez o envio.

Essa desculpa não “cola” para a professora da Faculdade de Direito da UFRGS Kelly Lissandra Bruch. Na sua interpretação da lei brasileira do direito autoral (Lei Federal n.º 9.610/98) e do Marco Civil da Internet (Lei Federal n.º 12.965/2014), aquele que hospeda o conteúdo tem, sim, responsabilidade pela sua legalidade. Se um usuário sobe um material contendo pedofilia, por exemplo, o dono da plataforma pode responder legalmente por isso. Afinal, ele está, de alguma forma, permitindo a transmissão do material. Isso vale para qualquer outro tipo de conteúdo ilícito, incluindo, aí, violações de direito autoral.

A mesma responsabilidade se aplica aos diretórios acadêmicos. O dirigente do órgão pode ser responsabilizado civil e criminalmente, mesmo se não foi ele o usuário que colocou o material na internet – pois é o responsável legal da pasta virtual.

Kelly é clara ao afirmar que nenhum aluno ou site pode divulgar as provas de autoria de um professor sem o seu consentimento. A lei dos direitos autorais explicitamente veda, em seu artigo 46, inciso IV, a publicação integral ou parcial do “apanhado de lições em estabelecimentos de ensino” sem a autorização prévia de quem as ministrou. Isso vale para provas, exercícios, modelos de relatórios, slides e até mesmo resumos da aula de um professor, pois, mesmo que o texto do resumo seja de autoria do aluno, a organização intelectual do conteúdo não é.

“Para o aluno, não é óbvio o esforço intelectual do professor para estruturar uma aula. Ele acha que é uma coisa natural. Eu digo isso porque eu já fui aluna. Mas é como copiar um artigo, um livro”

Kelly Lissandra Bruch
Limites do direito autoral

Há casos em que a utilização de obras de autoria de outra pessoa não é crime. É permitido o uso de trechos do trabalho intelectual alheio em forma de citação, ou seja, quando a sua reprodução não é o objetivo principal e o autor é citado. Essa reprodução não pode prejudicar a exploração comercial da obra original nem causar prejuízo injustificado ao legítimo interesse do autor. Isso também vale para os vídeos, as artes plásticas e fotografias.

Essa exceção se assemelha à doutrina do fair use presente em outros países. O fair use, ou “uso justo”, é o entendimento legal de que materiais com direito autoral podem ser reproduzidos quando não trazem prejuízos ao autor e não configuram plágio.

O Brasil não possui uma doutrina de fair use, mas o artigo 46 da Lei n.º 9.610/98 traz uma lista dos limites à proteção do direito autoral. De acordo com Kelly, decisões recentes já entenderam que esses limites são exemplificativos e, portanto, outras situações de exceção poderiam ser incluídas.

Os limites da proteção da lei – que impede a reprodução de apanhados de lições, mas permite citar trechos de obras – gera situações aparentemente contraditórias. A reprodução de uma prova é proibida; a do gabarito, quando feito pelo aluno, não.

A gravação de um vídeo mostrando como resolver uma questão da prova também é perfeitamente legal, pois é um trabalho intelectual original e o enunciado da questão, ainda que essencial para a existência do vídeo, representa uma parte pequena dele. Ainda assim, é preciso citar a origem ou o autor da questão.

Desafios para a avaliação

O assessor jurídico da Associação dos Docentes da UFRGS (ADUFRGS-Sindical), Francis Bordas, tem uma interpretação mais branda da lei. Se o compartilhamento de provas, trabalhos e resumos de aula está dentro da esfera de utilização educacional e não tem objetivo econômico, então não há complicações legais.

O problema, para ele, é outro: os métodos de avaliação do discente (provas, trabalhos, relatórios) se tornaram defasados. Em vez de tentar coibir a “cola cibernética”, o que é impossível, os professores deveriam reinventar os processos avaliativos.

Na prática, não é tão fácil. O professor José Gregório conta que suas aulas de química inorgânica possuem experimentos que o aluno deve realizar e, depois, informar o resultado obtido por escrito, que sempre deve se encontrar dentro de um intervalo esperado. Por ser um experimento químico simples, padronizado, exato e cujo ensino para o aluno de Química é incontornável, não há muito espaço para métodos de avaliação mais criativos do que preencher números num relatório. Logo, se o aluno pega um relatório pronto, ele nem precisa fazer o experimento.

Para o professor dos Programas de Pós-graduação em Educação e em Informática na Educação da UFRGS Sérgio Roberto Kieling Franco, a chave está em focar a avaliação no processo, não no resultado. No caso do experimento de química inorgânica, o aluno poderia ser requisitado a fazer uma reflexão sobre como chegou ao seu resultado e o que experienciou. Mesmo que a cifra final esteja incorreta, a descrição do processo pode revelar que o aluno aprendeu o que era necessário. Um erro cometido mostra mais sobre o aprendizado do aluno do que o resultado em si.

A opinião de Sérgio Franco é validada pelo também professor da UFRGS e diretor do Centro de Formação Continuada de Professores (FORPROF), Marcus Vinicius de Azevedo Basso. E ele vai além:

“Em vez de falar em ‘avaliação do processo’, eu digo que avaliação é processo. E um processo contínuo. Não é o resultado de um exercício ou de uma prova”

Marcus Vinicius de Azevedo Basso

Basso diz que o uso de material “pré-pronto” por parte do estudante rompe a expectativa do professor por uma entrega de material original. Há uma questão ética aí: copiar respostas de um gabarito pode garantir ao aluno uma boa nota na disciplina, mas não garante que ele aprendeu o conteúdo. Mais tarde, esse aluno irá se graduar e entrar para o mercado de trabalho. Se não aprendeu, como será um bom profissional?

Em linhas gerais, Basso e Franco concordam que o melhor jeito para contornar a situação da cola digital é evitar a avaliação massificada (provas idênticas e com questões objetivas) e utilizar instrumentos que explicitem o processo do aluno (relatórios, por exemplo).

Basso adiciona que, na medida do possível, o professor deve acompanhar e dialogar com o aluno durante o processo avaliativo. É o melhor jeito dele perceber o raciocínio utilizado pelo discente. Uma prova com questões objetivas não revela nada do processo: apenas mostra a sua etapa final.

Processos avaliativos tão personalizados podem ser inviáveis em turmas grandes. Afinal, o professor é apenas um, e o seu tempo, finito. Mas, em tempos de hiperconexão, parece não haver escolha: ou o docente se “desdobra em vários” para atender adequadamente todos os alunos, ou utiliza provas padronizadas e fica à mercê do compartilhamento de gabaritos. Sérgio Franco resume: “Freud já dizia que educação é uma profissão impossível”.


Os contrapontos

Passei Direto afirma que:

  • a sua responsabilidade legal sobre os materiais hospedados em sua plataforma é a mesma dos demais provedores de aplicação na internet, nos termos do artigo 19 e nos demais da Lei n.º 12.965/14;
  • existem procedimentos manuais e de ferramentas de IA para identificação de materiais em desacordo com as leis vigentes e/ou com os Termos de Uso da Passei Direto, seguindo as mesmas estratégias adotadas pelas maiores redes de conteúdos gerados por usuários no mundo;
  • qualquer usuário pode denunciar materiais publicados por meio da Central de Ajuda ou ao pressionar o botão “reportar”, presente em todos os materiais disponibilizados.

Fokvs afirma que:

  • nunca pensou em monetizar os materiais compartilhados, no sentido de vetar o seu acesso por meio de uma assinatura, por exemplo;
  • acreditamos que os arquivos enviados são como commodities e que o aluno pode facilmente os encontrar em drives, no Passei Direto, em grupos de WhatsApp, no Facebook, etc.;
  • a plataforma só visa centralizá-los para tornar o acesso aos arquivos mais fácil e democrático;
  • não quer ser afrontosa aos professores, por isso possui um sistema de denúncias de materiais e se disponibiliza a conversar e remover materiais da plataforma.

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