Publicado originalmente em Brasil de Fato por Ketline Lu. Para acessar, clique aqui.
Seja no Brasil ou na China, as vozes femininas precisam ser amplificadas
No período pré-revolucionário, as mulheres na China começaram a experimentar uma modesta melhora nas suas condições sociais em razão de um movimento que se impulsionou com os missionários protestantes ocidentais (1840-1898) e que se consolidou com o governo Qing (1907-1911), momento em que começaram a ganhar voz, pois tiveram finalmente acesso à educação, o que as tornou mais instruídas e integradas à vida política do país. Lembremos que, aliás, a emancipação feminina e a igualdade entre homens e mulheres foram princípios fundantes do Partido Comunista Chinês.
Com a Revolução Comunista de 1949, as mulheres chinesas começaram a gozar de um status jurídico e social melhor, uma vez que a partir deste momento a educação, o trabalho e a participação política foram legalmente reconhecidos e materializados como direitos. Diversos diplomas legais expedidos no momento demonstram essa mudança na condição jurídica e social das mulheres, como a Lei do Casamento (????, x?n h?n y?n f?), de 1950, promulgada por Mao Zedong, que proibiu o casamento de crianças e adolescentes e que instituiu o livre casamento, o que na prática significou importante avanço contra as tradições feudais de matrimônios arranjados e de venda de noivas crianças e adolescentes. O referido diploma legal também estabeleceu formalmente o poder familiar, em detrimento do poder patriarcal, antes exercido somente pelo homem chefe da família e que, a partir de então, passou a ser exercido pela mulher e pelo homem em pé de igualdade.
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Porém, como em todo país com raízes patriarcais, os avanços em prol das mulheres se deram de forma muito lenta. Somente em 1992, quarenta e três anos depois da revolução, é promulgada a Lei da República Popular da China de Proteção dos Direitos e Interesses das Mulheres, que dispõe, de acordo com as disposições da constituição chinesa, sobre a proteção dos direitos e interesses das mulheres e a promoção da igualdade entre mulheres e homens, com o fim de permitir o pleno desempenho do papel da mulher na modernização socialista. Em 1994, por exemplo, pela Lei de Trabalho (???, láo dòng f?), com vigência até hoje, é assegurado às mulheres trabalho assalariado, garantindo também proteção à mulher gestante.
Diplomas legais mais recentes também conferem proteção às mulheres, como a Lei de Promoção de Emprego da República Popular da China (2007), que reforça a garantia às mulheres dos mesmos direitos trabalhistas que os dos homens, proibindo discriminações em razão do gênero, e a Lei de Violência Doméstica da China (2016), a qual visa proteger mulheres vítimas de opressão em seus próprios lares. Embora tais avanços legais sejam louváveis, notamos que levaram um tempo bastante grande para finalmente ocorrerem.
“O trabalho produtivo é o mais glorioso, as mulheres também podem se tornar heroínas, dar à luz meninos ou meninas é tudo igual, transformar as condições sociais para criar novos costumes” – chineseposters.net
Aqui, no Brasil, a condição jurídica das meninas e mulheres infelizmente não é diferente e também se desenvolve a curtos e lentos passos, com muita resistência dos setores conservadores e da extrema direita. Vejamos, por exemplo, que das 7 constituições que vigeram no Brasil, somente com a Constituição da República de 1988 as mulheres passaram a ser reconhecidas expressamente como iguais em direitos e deveres aos homens, conforme observamos no inciso I do art. 5º. Essa falta de reconhecimento jurídico às mulheres provoca efeitos diretos em nossas vidas hoje, já que influenciam as normas infraconstitucionais, as decisões judicias e até o ensino do direito. Um exemplo vergonhoso disso é legalidade do casamento de adolescentes com 16 anos, disposto no artigo 1.517 do Código Civil, que permite que adolescentes, ainda em especial fase de desenvolvimento e crescimento, casem com adultos, o que lhes priva de uma série de direitos, vez que as submete ao risco de gravidez precoce (e todos os problemas de saúde envolvidos nisso), de evasão escolar e de redução do nível educacional, o que reflete diretamente nas suas possibilidades profissionais, bem como limita a sua autonomia, expondo ao risco de violência doméstica e de dependência econômica. Outro exemplo é a causa suspensiva de casamento do inciso II do art. 1.523 do Código Civil de 2002, o qual dispõe que a mulher até dez meses do início da viuvez ou da dissolução do casamento não deve se casar novamente, o que seria aceitar que sua autonomia da vontade seja reduzida, ainda que momentaneamente, por conta de uma suposta possibilidade de gestação. Ou ainda a falta de matérias no currículo obrigatório dos cursos de direito que debatam a situação jurídica desigual em que as mulheres se encontram hoje no Brasil.
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Como explicar essa demora no reconhecimento jurídico a nós mulheres? Por que os nossos interesses são sempre deixados em segundo plano? Por que, enfim, aceitamos esse tratamento, se, como na famosa fala de Mao Zedong “as mulheres sustentam metade do céu”? Somos mulheres, gestamos toda a população, contribuímos incansavelmente com nossos trabalhos e enfrentamos diuturnamente nossa árdua segunda jornada em casa, cuidando de todos e possibilitando o trabalho fora de casa, sem remuneração digna e nem reconhecimento por parte da família, do estado e da sociedade.
Esse quadro injusto só será alterado se lutarmos por uma sociedade com igualdade entre gêneros e para isso precisamos cada vez mais de mulheres e homens dispostos a lutar contra o patriarcado e contra as estruturas que o sustentam. Isso pressupõe maiores estímulos à participação feminina, especialmente por meio de políticas públicas voltadas à inclusão de meninas e mulheres, e o uso de perspectivas que levem em conta a desigualdade entre gêneros, atualmente sustentada por um direito supostamente neutro e objetivo. Seja no Brasil ou na China, as vozes femininas precisam ser amplificadas.
“A Nova China deu às mulheres a oportunidade de servir a nação de forma ilimitada e livremente!” – chineseposters.net
* Ketline Lu é advogada, formada pela Universidade Federal do Paraná e especialista em Direito Constitucional e Direito Ambiental.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Paraná
Edição: Lucas Botelho