Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.
Relações étnico-raciais | Estudantes refletem sobre apagamentos e resistências no mundo acadêmico; iniciativas buscam ampliar o conhecimento sobre essas populações
*Foto: Flávio Dutra/JU
Em frente à Casa do Estudante Indígena, duas mulheres me aguardam para uma conversa. Elas me olham curiosas. São Jaqueline de Paula, 24 anos, da etnia Kaingang, e Maria Brazão, 30 anos, da etnia Baré. Na entrada, os dizeres “Purãga Pesika”, que significam “seja bem-vindo” em nheengatu, língua indígena do tronco Tupi-Guarani. E eu as encontro justamente para saber se se sentem bem-vindas no ambiente da Universidade.
A língua indígena nheengatu nasceu da combinação do tupi com o português. ‘Língua boa’ em tupi, foi chamada de ‘língua geral’ durante a colonização, sendo utilizada por jesuítas e povos de etnias diferentes. Proibida pela coroa portuguesa no século XIX, o idioma foi praticamente extinto. No período pré-colonial se falavam cerca de mil línguas diferentes no território que hoje pertence ao Brasil. Atualmente, são apenas 154.
Maria Brazão, Baré, que estuda Medicina na UFRGS, me conta que sua língua desapareceu. “Só sei falar português.” E explica que sua mãe tinha medo do preconceito. “Ela tem muito sotaque e sofreu muito por isso.” Baré é povo do rio, vive na floresta amazônica, na beira do rio Xié. Antes da chegada dos brancos, falavam uma língua da família linguística aruak, hoje extinta. O idioma predominante na aldeia, além do português, é o nheengatu.
Jaqueline de Paula, que cursa Serviço Social, diz que alguns em sua aldeia ainda falam Kaingang, mas ela não. “Só sei algumas palavras.” O perigo do apagamento de línguas é o apagamento de formas de ver o mundo, como explicita Ailton Krenak. E a etnobotânica também é ameaçada: os saberes medicinais de ervas ligados à língua falada são conhecimentos apagados.
Em seu livro Banzeiro Òkòtó, Eliane Brum destaca o conceito de “existir violentamente” como pessoa branca no Brasil, um país racista. Ela explica que, apesar de não ser uma pessoa violenta, o simples fato de ser branca em um país de história colonial violenta, em que até hoje negros e indígenas têm piores empregos e piores salários, é existir violentamente. E é esse o sentimento que tive ouvindo as estudantes indígenas em uma tarde ensolarada em Porto Alegre.
Ao dizer que a universidade não é feita para elas, as estudantes mencionam alguns exemplos. Um deles é a carga horária dos cursos e o ritmo frenético de estudos e provas. “É uma coisa que te adoece”, complementa Maria. “A gente não foi criado assim, pensando sempre no próximo passo. Vivemos o hoje.” A frase é a materialização da ideia de humanidade única, de uma forma certa e universal de viver, no estilo kantiano – o que Ailton Krenak denuncia como uma farsa em Ideias para Adiar o Fim do Mundo. Apesar de existirem várias formas de ser humano, a universidade só perpetua uma: “A universidade é branca”, enfatiza Jaqueline.
Outro aspecto é a conciliação da maternidade com a graduação. Com a inauguração da Casa do Estudante Indígena da UFRGS, as estudantes mães podem, agora, morar com seus filhos enquanto estudam. É o caso de Jaqueline e Maria, que contam como é melhor morar na casa do Estudante Indígena, em comparação a antes, na Casa do Estudante, em que não era permitida a presença de suas crianças. E como é ser mãe na universidade? Elas se olham, um silêncio irrompe. “É difícil”, diz Maria com um suspiro. “A universidade não é feita pra gente, sabe”, complementa Jaqueline.
Saúde indígena na Universidade
Algumas iniciativas, no entanto, buscam mudar esse cenário. A professora e médica Camila Giugliani, que se formou há vinte anos na UFRGS, relembra que não havia nenhuma disciplina que abordasse saúde indígena. Hoje ela é professora da disciplina optativa Relações Étnico-Raciais e Saúde das Populações Negligenciadas, que dá espaço para discussão da temática de saberes dos povos originários, africanos e ciganos.
Camila alerta para a necessidade de a disciplina se tornar obrigatória. Os alunos que se matriculam na atividade já são engajados na causa, e ampliar o acesso pode “mudar as práticas profissionais dos futuros médicos”, como a professora diz ao “esperançar”, citando Paulo Freire, para construir uma Universidade e uma sociedade mais empáticas. “Os alunos aprendem e os professores também”, completa.
Rodrigo Caprio, médico de família e também professor da disciplina, conta que “é uma falta no currículo” a não discussão da saúde indígena. Em contrapartida, há a iniciativa da Liga de Saúde Indígena (LISAI), coordenada por ele e fundada por um grupo de alunos indígenas a partir da necessidade de incluir a temática no ambiente acadêmico. Ismael Roque, Kaingang, um dos fundadores do projeto, cursa Medicina e explica que umas das ambições da Liga é que o projeto de extensão vire realidade através do acompanhamento de pacientes indígenas no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). A ideia é fazer a ponte entre os dois mundos.
Constante luta por espaço
Ismael conta que sonhou com um jaleco branco anos antes de entrar na Universidade. Quando saiu da escola, resolveu tentar a vaga no vestibular. Não conseguiu. Acabou trabalhando em uma rede de supermercados, na área frigorífica, enquanto estudava novamente para a prova. Ali ele se viu com um jaleco branco e interpretou como um sinal de que havia de passar um tempo trabalhando antes de ingressar no curso. O sonho com o jaleco tinha se concretizado e o sonho da Medicina veio logo em seguida, quando passou no vestibular. “A gente tem isso com o sonho, ele nos conta coisas.”
A presença dos estudantes indígenas na área da Saúde tem sido essencial para a mudança de perspectiva nas universidades brasileiras. Há uma visibilidade crescente pela luta constante por espaço.
Sobre trazer pesquisas de ervas medicinais para a Universidade, Ismael me dá o exemplo da digoxina. Ele soube apenas em aula, por meio de uma professora, que o remédio tem um princípio ativo de origem indígena, e a indústria farmacêutica explorou o conhecimento sem dar os créditos aos “pesquisadores originais”. “Eles [os brancos] se apropriam de tudo, esse é o problema.” Devido ao passado colonial, à apropriação cultural e ao apagamento de saberes, eles falam de forma reticente e distante sobre a possibilidade de pesquisar ervas indígenas na Universidade.
A permanência no ambiente acadêmico é uma luta constante, e o sentimento de não pertencimento é recorrente. “Se pudesse escolher, estaria na aldeia, mas minha presença na universidade é importante”, diz Jaqueline. Entre a saudade de pertencer e a luta para existir na universidade, ela e tantos outros estudantes indígenas seguem representando seus povos, pois aprender e difundir o conhecimento é o que os move.