Publicado originalmente em Brasil de Fato por Rodrigo Ozelame da Silva, Julian Perez-Cassarinno, Rodrigo de Andrade Kersten. Para acessar, clique aqui.
A juçara, como é conhecida no Paraná, é uma palmeira que reexiste historicamente, principalmente, na Mata Atlântica. Seu nome tem origem tupi e significa “o que dá farpas ou lascas”. Em outras regiões do Brasil ela recebe os nomes de içara, palmito-doce, palmito-juçara, palmiteiro, ensarova, ripeira, etc. Botânicamente, foi atribuída a nomenclatura Euterpeedulis Martius para a espécie.
Habita parte do Cerrado e, especialmente, a Mata Atlântica e seus ecossistemas florestais associados. Há registro de populações desta espécie nos estados do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Distrito Federal, Goiás, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas, Pernambuco, Sergipe e Bahia. Bem como na parte nordeste da Argentina e sudeste do Paraguai.
Um aspecto importante a se destacar é que, em geral, a presença da juçara está ligada à Floresta Ombrófila Densa, que ocorre do litoral norte do Rio Grande do Sul até o Ceará, porém, a espécie também ocorre em matas interiores, como a Floresta Estacional Semidecidual, de presença mais a oeste nos estados do sul, bem como no interior de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Bahia. Sua ocorrência nesta formação florestal é menos conhecida e estudada, o que valoriza ainda mais o esforço feito pelas famílias do acampamento Dom Tomás Balduíno e sua parceria com o laboratório Vivan de Sistemas Agroflorestais e o Mestrado em Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável da UFFS e PUC Curitiba com a finalidade de não só realizar a semeadura da juçara, mas fazer um acompanhamento de seu processo de regeneração nos remanescentes florestais onde será lançada.
A juçara é uma palmeira que quando adulta pode atingir até 15 metros de altura. Seu tronco é reto e liso. Suas folhas são largas e pintadas, tendo a coloração verde escuro. Na ápice do tronco (meristema apical), encontra-se um palmito comestível. Na base deste palmito, entre 7 a 12 anos o nascimento da planta, emergem seus cachos (inflorescência) que contém inúmeros ramos e frutos. Cabe destacar que, diferente da maioria das demais espécies produtoras de palmito, a juçara não possui capacidade de rebrota, portanto, cada palmito extraído corresponde a uma árvore derrubada e perdida no ecossistema em que se encontra inserida.
Seus frutos medem de 1 cm a 1,4 cm, cor quase preta ou negro-viçosa luzidia quando maduros. Cada cacho chega a ter mais de dois mil frutos e pesar até 25 quilos. Frutificam de maneira abundante nos meses de março a junho, sendo que a germinação da semente leva de três a seis meses.
Tais frutos são consumidos por diversas espécies de aves e de mamíferos, não raro em perigo de extinção, como a jacutinga (Aburria jacutinga), o veado bororó (Mazama Bororo), o ‘papagaio-de-peito-roxo (Amazona Vinacea), o ‘sabiá-pimenta (Carpornis melanocephala) e a queixada (Tayassu pecari). Além disso, os frutos ficam disponíveis num período de diminuição de alimento nas florestas (inverno e outono).
Ocorre tipicamente em solos mais úmidos, em temperaturas com média anual superior a 17 ºC e altitude inferior a 300 metros. Nos três primeiros anos de vida, estarem num ambiente sombreado e pouco adensado, melhora as condições de desenvolvimento dos indivíduos. Após esse período, a planta necessita de uma quantidade maior de “sol” (radiação luminosa) e por isso passa a ocupar os estratos superiores da floresta. Como consequência, naturalmente, a juçara passa a ocupar a floresta e cria espaços com alta densidade de indivíduos (100 a 500 indivíduos/hectare) em áreas com mata conservada, criando assim subpopulações com diferença genética entre si, isto é, com grande riqueza genética.
De fato, em torno da junção desenvolvem-se diversos processos ecológicos, como a alimentação da fauna e a promoção da sucessão florestal. Nesse sentido, ela é uma espécie para o bioma Mata Atlântica.
Para além da sua importância ambiental, a juçara tem vínculos históricos com diversos modos de vida de humanos que habitam os sistemas ecológicos que ela reexiste. Povos indígenas como os Guarani Nhandeva, Quilombos e Comunidades Caiçaras construíram fortes laços de ajuda mútua com a espécie. Alimentação dos frutos in natura e sua polpa, utilização de seus troncos e folhas na construção de moradia e espaços religiosos e uso medicinal (chá de suas raízes são usados como vermífugo) são exemplos de relação humana com a juçara. Por outro lado, o saber destes grupos sobre o manejo, locais adequados para a semeadura e dispersão das sementes, contribuiu para a multiplicação juçara. Ou seja, a juçara é uma espécie chave, especialmente, para os sistemas ecológicos e grupos humanos que historicamente compõem a Mata Atlântica.
Projeto de morte da revolução verde ameaça a juçara
A presença da juçara diminui drasticamente na Mata Atlântica a partir de 1930 se intensificando na década de 1960. Dois motivos contribuem para esta diminuição:
i) extração predatória para comércio do palmito por empresas do ramo. Até o início da década de 1990, estimava-se 4 mil toneladas anuais de comércio de palmito de juçara por tais empresas, o que demandava uma área anual de 27 mil hectares a 160 mil hectares, de acordo com o estágio de conservação da floresta e;
ii) diminuição da área conservada do bioma Mata Atlântica. Tal bioma cobria 15% (mais de 1,3 milhões de km) do território brasileiro e após séculos de uma racionalidade que compreende a “árvore e a floresta como empecilhos para o crescimento econômico”, atualmente restam cerca de 12,4% de área conservada da Mata Atlântica. Essa tentativa de eliminar a floresta nos dias de hoje, via de regra, se deve ao avanço grandes monoculturas para a produção de commodities voltadas ao mercado externo, que são produzidas com base no modelo da chamada “revolução verde”, que foi a implementação massiva de monoculturas de um pequeno grupo de espécies baseadas no uso extensivo de sementes melhoradas em laboratório (hoje muitas delas transgênicas), na mecanização intensiva e no uso de fertilizantes químicos e agrotóxicos em larga escala.
A conjunção de extrativismo ilegal para alimentar empresas de palmito e o avanço do agronegócio via monoculturas e/ou pecuária extensiva foram mortais para a conservação da juçara. De espécie abundante e vistosa em florestas litorâneas e matas ciliares de interior, a mesma passou a ocupar o posto de espécie ameaçada de extinção. Sendo incluída no Livro Vermelho de espécies ameaçadas da flora brasileira.
Uso sustentável e reexistência da juçara
Se por um lado há um movimento da agricultura capitalista em expandir suas fronteiras, independente de seus impactos ambientais e sociais, por outro, povos indígenas, quilombolas, assentados da reforma agrária e agricultores familiares que optaram pela agroecologia e pelos sistemas agroflorestais, são exemplos de possibilidades de restauração e manejo desta espécie partindo dos saberes historicamente construídos entre comunidades humanas – principalmente pré-colombianas – floresta e, em particular, a juçara.
Sistemas Agroflorestais são capazes de recuperar áreas degradadas, gerar renda e produzir alimentos, contribuindo também para uma relação mais harmônica entre o ser humano, outros seres vivos e seus ecossistemas. Um dos mecanismos do Sistema Agroflorestal (SAF) que vem se destacando por reunir fundamentos teóricos e práticos da agricultura familiar é a denominada Agricultura Sintrópica, técnica que vem sendo desenvolvida há quase 40 anos. Se destaca por ir “do simples para o complexo”, recuperando áreas degradadas e, ao mesmo tempo, produzindo alimentos em ambientes florestais. É um uma maneira de pensar sistemas agroflorestais não apenas como meros consórcios de plantas, mas deforma apresentar estrutura e função do ecossistema original.
A palmeira juçara possui particular aptidão para uso em sistemas agroflorestais, uma vez que seu desenvolvimento se adapta à condições de luminosidade restrita (presença de sombra), bem como ao ocupar os extratos mais altos dos sistemas, sua copa não gera sombra excessiva, permitindo o desenvolvimento de outras espécies embaixo dela. Muitas experiências têm mostrado, como no caso do litoral norte do RS, que, por exemplo, o casamento entre o cultivo de banana e juçara potencializa a geração de renda, reduz a incidência de pragas e doenças e melhora as condições ambientais dos agroecossistemas. No acampamento Dom Tomás Balduíno já estão sendo implantados SAFs que consorciam juçara com café e erva-mate, além de culturas anuais.
Com base nestas resistências e a partir da luta de movimentos socioambientais,no início da década de 1990 emergiram um conjunto de mecanismos legais para conter a exploração predatória da juçara e dos sistemas ecológicos que ela se insere, bem como um conjunto de políticas públicas voltadas para a promoção da agroecologia é um modelo sustentável para o rural brasileiro, sobretudo desde a primeira eleição do Presidente Lula.
Neste contexto, a produção de polpa de juçara vem demonstrando ser uma alternativa sustentável tanto para a juçara, quanto para os grupos humanos que se relacionam com ela.
A polpa da juçara se assemelha a polpa de outra palmeira: o açaí (Euterpe oleracea), prima botânica da juçara. Tanto que em alguns locais ela é intitulada de açaí de juçara. Os frutos são ricos em ácidos graxos insaturados (oleico, linoleico, palmítico), compostos fenólicos antioxidantes que apresentam grande capacidade de capturar radicais livres causadores do estresse oxidativo (capacidade das células se regenerarem).
A polpa da juçara pode ser consumida in natura, ou misturada com iogurte, cereais e outras frutas (similar ao açaí). Ou servir de matéria-prima para elaboração de sorvetes, sorbet (parecido com o sorvete, mas sem o uso de leite), geleias e picolés. Neste sentido, diversas famílias estão encontrando uma alternativa de renda (superior a extração do palmito) como processamento da polpa de juçara.
Em conjunto com a questão econômica, ambientalmente o processamento de polpa apresenta vantagens. Ainda que o manejo (aumento da incidência de luz solar e diminuição do adensamento de indivíduos) seja importante para o desenvolvimento da juçara, o fato da não retirada da planta contribui para o aumento da disseminação das sementes. Seja pelo consumo da fauna ou pela retirada do cacho pelos humanos, já que após a extração da polpa a semente retorna para a floresta com níveis interessantes de germinação.
Estudos sobre a quebra de dormência das sementes de juçara indicam que banhá-las em temperaturas de até 35 graus estimulam a germinação da espécie, bem como a chamada escarificação das sementes, que se trata de lixar as sementes, também colaboram para uma maior taxa de germinação. A extração da polpa promove estas duas ações, uma vez que os frutos são colocados em água morna para melhor desprender a polpa e as pás da despolpadeira promovem um certo grau de escarificação das sementes. Assim, a despolpa da juçara não só possibilita a produção de alimentos de qualidade e geração de renda, como também favorece a germinação das sementes da espécie, facilitando seu plantio e dispersão em processos de restauração florestal. Ambas ações compõem as atividades da festa de semeadura da juçara no dia 7 de junho do corrente ano.
O processamento da polpa de juçara se constitui como uma ação de caráter agroecológico que faz um claro contraponto ao modelo hegemônico do agronegócio globalizado, onde produção de alimentos saudáveis, geração de renda, valorização dos saberes locais, conservação e restauração ambiental se articulam.
Esta articulação se sustenta nos saberes camponeses e de povos e comunidades tradicionais, cuja existência e resistência são fatores fundamentais e estratégicos para promover uma produção de alimentos que garantam sustentabilidade ambiental, social, econômica e cultural.
*Rodrigo Ozelame da Silva é Gestor Ambiental, Mestre em Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável (PPGADR-UFFS) e Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento (PPGMADE-UFPR). Pesquisador de Pós Doutorado CAPES junto ao PPGADR-UFFS; Julian Perez-Cassarinno é Engenheiro Florestal. Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento (PPGMADE-UFPR). Professor do campus Laranjeiras do Sul-PR da UFFS. Membro da direção da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (RedePenssan); Rodrigo de Andrade Kersten é Biólogo, Mestre em Botânica (PPGB-UFPR) e Doutor em Engenharia Florestal – Conservação da Natureza (PPGEF-UFPR). Professor da PUC-PR.
Fonte: BdF Paraná
Edição: Lia Bianchini