Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.
Artigo | Mestrando em Sociologia, Umaro Seidi reflete sobre o processo (sutil e dinâmico) de negação da humanidade do sujeito africano
*Por Umaro Seidi
*Ilustração: Mitti Mendonça
Há séculos que se vem buscando apagar as verdadeiras e diversas histórias do continente africano para empregar uma única narrativa: a do atrasado e do indígena bárbaro. As histórias desse continente e do seu sujeito foram escritas e apresentadas com tendências objetivas de ‘preservar e gerar’ uma manutenção da dominação ocidental. Dominação essa que foi perpetuada através dos atos mais violentos e bárbaros cometidos no universo e que caracterizam a relação entre a África e o Ocidente, que se resume na escravização e na colonização.
As marcas da violência perpetuada pelos ocidentais estão presentes em todas as sociedades que, por infortúnio, tiveram experiências de contato e relação direta ou indiretamente com os invasores colonizadores e exploradores nesses espaços. Conforme argumentos de Nkolo Foé, Nah Dove, Achille Mbembe, entre outros, as imagens provenientes da época de comércio dos escravizados são fortemente violentas e continuam intactas na mente da grande maioria da população das sociedades dos colonizadores e consequentemente nos espaços em que estes geraram fortes influências. Tal constatação extingue o mito do “bom invasor” criado por estes, que, ao longo dos anos, justificaram suas invasões e seus atos bárbaros a outras terras e povos como sendo puramente motivadas pelos processos de expansão da sua religião e da civilização. Desta forma, tais ações os colocariam nas posições de ‘anjos de guarda’ em busca da salvação dos povos sob rumos de perdição.
O pisar dos europeus no continente africano, além de inaugurar essas tragédias, que são uma das piores que a humanidade já experimentou ao longo da sua existência e que se transformaram em um eterno pesadelo para grande parte das nações africanas, de modo que jamais escapou das memórias dos povos que conviveram e ainda convivem com os resquícios das marcas deixadas por essas violências, é o principal motivo para a qual a humanidade africana foi posta em questionamento. Ou seja, o processo da escravidão e o colonialismo foram dois principais acontecimentos que contribuíram diretamente para a negação da humanidade do ser das Áfricas. Sendo assim, de acordo com Achille Mbembe, é a classificação efetuada durante a escravidão que introduz, com maior intensidade, a exclusão dos africanos no circuito da humanidade, ou ainda os classifica como inferiores em termos hierárquicos nas espécies humanas que existiram/existem na face da terra.
Assim, o esforço em reafirmar a sua existência como ser humano com caraterísticas físicas e mentais semelhantes às de todos, e que apenas é blindada por condições climáticas, regionais e genéticas, de um tom de pele diferente, é precedido por uma arquitetura sequencial de fatos violentos, e uma delas é a negação da sua condição humana por meio de narrativas produzidas com o propósito da exclusão destes como principais agentes da sua história e consequentemente a procura de legitimação de atos macabros perpetuados pelos invasores. Conforme o autor acima mencionado, “a apologética densidade da afirmação ‘somos seres humanos como quaisquer outros’ apenas pode ser compreendido face à violência da negação que a precede, e que a torna não apenas possível, mas também necessária”; em outras palavras, inevitável.
Um dos mais notáveis impactos dessa violência da manipulação ocidental sobre a África e o corpo preto africano é a demarcação de características físicas, psicológicas e culturais sobre os sujeitos africanos. Essa construção, apesar de sofrer resistências, ainda se faz presente nos cenários sócio-ocidental e também brasileiro.
Mesmo com a criminalização de tais atos, em algumas sociedades atuais, e em especifico no Brasil, as condutas preconcebidas passam a assumir modos operandi sutis e dinâmicos. A performance dinâmica passa a reger o quotidiano desses indivíduos. Por conseguinte, fomenta-se a tática representativa transpondo-a a um plano simbólico. Nesses moldes, o preconceito cotidiano assume suas diversas caraterísticas e faces em sociedades com uma forte herança ocidental, impondo uma convivência entre preconceito a e integração com os indivíduos que tiveram as suas histórias estruturadas e imagens construídas por outro — o ocidental.
Esse processo foi possível por intermédio de duas tecnologias incisivas: o uso da arte e da literatura, sendo estes dois os maiores instrumentos de comunicação existentes. A construção da imagem negativa do que é a “África homogênea” imaginada a partir de fora dela e a do africano como cidadão de terceira importância através desses instrumentos colaboraram na estruturação da violência simbólica sofrida por estes sujeitos em sociedades como a brasileira, na qual a mídia e, em partes, o ensino continuam à deriva dos discursos arquitetados. A violência ocidental construída nesse âmbito se manifesta nos discursos representativos (simbólica) e nas práticas (física). O primeiro consiste em exercícios de representação do outro como inferior, atrasado, sem cultura, sem religião, etc.; enquanto o segundo se configura nas práticas da imposição de normas, além de exercer poder sobre o corpo dos sujeitos, corpo este que fora considerado apenas no seu aspecto material, ou seja, um corpo sem alma.
Um alento à alma se avizinha quando se têm projetos que priorizam escrever histórias das Áfricas a partir da África e de seus/suas pesquisadores/as, usando métodos próprios e interpretando realidades nas quais se inserem e participam na sua construção. São exemplos disso os projetos resultantes em volumes da “Historia Geral de África”, além de coletâneas como “Como Fazer Ciências Sociais e Humanas em África: Questões Epistemológicas, Metodológicas, Teóricas e Políticas” e “O Resgate das Ciências Humanas e das Humanidades através de Perspectivas Africanas”, e inúmeros artigos, monografias, teses, e produções de outros gêneros, com temas voltados a questões da história e realidade africana.
Umaro Seidi é bacharel em Humanidades e licenciado em Sociologia pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), mestrando em Sociologia na UFRGS e pesquisador associado do grupo de Pesquisa Associativismo, Contestação e Engajamento (GPACE).
“As manifestações expressas neste veículo não representam obrigatoriamente o posicionamento da UFRGS como um todo.”