Publicado originalmente em Brasil de Fato por Tainá Machado Vargas. Para acessar, clique aqui.
Em 14 de março de 2023, a startup californiana Open.AI surpreendeu o mundo ao anunciar o lançamento do GPT-4, uma versão aprimorada do programa desenvolvido no final de 2022. Essa inovação revolucionária conquistou rapidamente uma base crescente de adeptos em apenas alguns meses de operação. O Chat GPT, como é conhecido, pode ser comparado a uma espécie de oráculo virtual, adaptando-se para responder às nossas dúvidas sobre qualquer assunto solicitado. Sua funcionalidade vai além, e poderia ser considerado uma terceira dimensão da consciência, por atuar como um portal virtual sem limites legais bem definidos. Acontece que o Chat GPT tem simplificado nossos esforços discursivos ao máximo, reduzindo as referências envolvidas nesse processo. Ele encurta as distâncias comunicativas entre nós ao permitir que conceitos e ideias aplicáveis ao nosso plano de compreensão sejam incorporados com facilidade dentro de nossos idiomas.
O uso constante dessa ferramenta é discutível e pode gerar desgastes nas frequências subjetivas entre um mundo dividido pela incorporação do trabalho e o acúmulo tecnológico. Esse fenômeno impressionante desperta um certo desconforto em relação à crescente tecnicidade de um futuro cada vez mais impregnado pelas preocupações digitais. De forma objetiva, este texto busca entender de que modo esse sistema inteligente nos expõe a desafios permanentes, evidenciando também deficiências atuais na área jurídica e na administração da justiça. No Chile, por exemplo, foi permitido que magistrados consultassem o Chat GPT antes de prolatar sentenças.
A falta de debates éticos sobre a indeterminação do futuro aparece como um amplificador de dúvidas e de má orientações profissionais, por não adaptar propósitos de subjetividade no trabalho que nos incluam. No entanto, sabemos também que o nível de compreensões associadas ao Chat GPT é distinta, e dificulta que muitos profissionais reconheçam as direções que esse “novo mercado”, estabelece. Conforme os resultados de uma pesquisa citada pela BBC, um quinto dos trabalhadores reconhecem sentir inseguranças sobre ser substituído no trabalho por um sistema de Inteligência Artificial, como o Chat GPT. Os cálculos de produtividade já estão em curso, sendo elaborados por empregadores para fins de apurar a substituição de mão de obra especializada.
Advocacia do futuro e o seu perfil Big Tech
Na realidade, percebemos que a formação universitária em Direito já não conta com a popularidade de antes. A questão política também preocupa, pois, está diretamente relacionada à incapacidade da tecnologia, de ser empregada como um meio de fortalecer posições mais democráticas, ou uma forma de solucionar desigualdades com letramento digital.
O ensino jurídico, há anos, vem sendo orientado pela lógica autoempresária, e a imposição desse modelo neoliberal, nas graduações de Direito, é feita através da padronização de um individualismo profissionalizante. Esse fenômeno ocorre devido à hegemonia da economia de serviços, aos regimes “nem, nem” e do culto à terceirização. Se antes nossa produção intelectual costumava ser um pilar de formação acadêmica e profissional, hoje perdeu a exclusividade humana de gerar significados. A universidade não apoia estratégias éticas para enfrentar esse futuro incerto, baseado na criatividade e na participação coletiva. Toda fonte de conhecimento é predeterminada por uma racionalidade de fatores que, na maioria das vezes, espia interesses econômicos. As inteligências artificiais, de certa forma, diminuem essa autenticidade de nossos processos, e nos fazem questionar nossas capacidades de influenciar políticas de ruptura contra a auto-exploração.
Atualmente, tornar-se influente nas redes sociais me parece que é a estratégia fundamental para se alcançar posições de destaque na profissão. Para atingir esse objetivo, é importante seguir algumas etapas de preparação, tais como obter engajamento social nas redes, atrair seguidores, estar atento às mudanças e transformações culturais que ocorrem nesse ambiente, sem comprometer os princípios éticos que regem esta dinâmica concorrente. No entanto, isso é só mais uma questão que faculdade não prepara. Precisa-se ter em conta sobre como lidar com as regras não escritas, pelo “jogo da exploração do trabalho”, para professores, advogados e outros. Nesse contexto, construir uma imagem publicitária é o que permite colocar-se, ou preservar o emprego existente. Para isso, a abordagem docente deve ser atrativa para o consumo, e sempre deve estar alinhada com as expectativas e requisitos do mercado.
Conforme presenciamos, o cenário atual é caótico. O mercado de trabalho está saturado de profissionais “sem utilidade”, ou com sobre-excesso de qualificação para as vagas que são ofertadas. É assim o esgotamento profissional, que não é devidamente reconhecido como um sintoma inflacionário da economia neoliberal. Em relação à categoria jurídica, ela parece estar recuada dos processos de modernização, enquanto os colegas estão “inseridos”, neste contexto digital. De alguma forma, outros são ignorados pelas dificuldades estabelecidas, pois, não dominam as novas habilidades de concorrência, e não têm acessos a esses recursos de refinamento profissional.
Infelizmente, este é o paradigma atual do exercício da advocacia, na era das big techs. A onde quer que se vá, sempre tem alguém tentando nos empurrar coisas, cursos, atualizações. Isso acontece devido à economia monopolizada pelo setor de serviços. Nessa disputa por eficiência intelectual com as IAs — de braços cruzados com o mercado de consumo — todos acabamos sendo empurrados para um ritmo acelerado, em que estamos perdendo o controle do tempo, e nos distanciando da verdadeira experiência formadora do futuro.
Naturalmente, não se pode excluir a advocacia das atualizações do campo digital. Isso é um processo inescapável, que nos digere em troca de habilidades mais perspicazes. Neste regime de transição tecnológica, precisamos de um pouco segurança, e, acima de tudo, de proteção social abrangente que nos contemple. Novas formas de promoção profissional dividem as redes sociais, enquanto outros colegas, menos privilegiados, ainda enfrentam os dilemas causados pela má avaliação do Exame da Ordem. Essa problemática gera um regime de exceção profissional, que tende a se acentuar, com o antagonismo tecnológica das IAs.
Valemos menos do que as tecnologias que produzimos
A realidade da advocacia profissional demanda um esforço psíquico consistente de nós, advogados, uma vez que as carreiras jurídicas são retratadas como territórios propícios à concentração de capitais, de feudos clientelistas e de oportunismo político de mercado. Nessa perspectiva, a falta de incentivo leva muitos a abandonarem a advocacia. A maioria de nós é sobrecarregada com a responsabilidade de entregar os melhores resultados a preços cada vez mais baixos. Aparentemente, durante a pandemia, essa competição se intensificou em meio à redução das proteções sociais.
Devemos empregar nossa inteligência para discutir essas transformações, protegendo nossos valores morais como sociedade, diante das ameaças da castração tecnológica. A agressão capitalista faz parte de um processo histórico e civilizatório de desvalorização do trabalho como um direito humano, perpetuando a ideia de que os trabalhos físico e intelectual são inferiores, em comparação às máquinas, cada vez mais inteligentes do que nós.
Considerando o ritmo acelerado da evolução tecnológica, é evidente que não podemos progredir sem repensar a abrangência de nossa formação tradicional. Portanto, podemos esperar resultados desanimadores em vez de promessas empoderadoras, em relação à capacitação e à permanência no mercado de trabalho, para a maioria de nós.
Referências:
Big techs: a ascensão dos dados e a morte da política. Morozov, Evgeny (1984). São Paulo: Ubu Editora., 2018.
O Chat GPT é uma máquina ideológica
ChatGPT já ajudou a dar sentença judicial: esse é o futuro dos tribunais?
* Tainá Machado Vargas é mestra em Sociologia do Direito pela Universidade La Salle, Canoas/RS. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. É colunista independente da Empório do Direito e outras Mídias digitais. Pesquisadora vinculada a Grupos de Pesquisas CNPq nas seguintes áreas: terceirização do trabalho, gênero e neoliberalismo.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira