Publicado originalmente em Agência Bori. Para acessar, clique aqui.
Não há dúvidas de que a Covid-19 dominou o noticiário especialmente no primeiro ano da pandemia. As descobertas científicas sobre a Covid-19, no entanto, não foram o principal assunto. É o que mostra um artigo publicado na terça (23) a revista Journal of Science Communication (JCOM) América Latina, que analisou a cobertura de Covid-19 dos jornais Folha de São Paulo e The New York Times durante uma semana de junho de 2020, período no qual havia um platô de mil mortes diárias por Covid-19 e que marcou também o início do consórcio de notícias formado por seis dos mais influentes veículos de notícias do Brasil (incluindo a Folha).
O trabalho analisou 423 peças extraídas com mineração de dados publicadas de 21 e 27 de junho de 2020 sobre a pandemia, e classificou esse conteúdo pela identificação do seu tema. Entre os resultados: um em cada dez reportagens tratam de “Ciência e novas pesquisas”. É a mesma proporção de cobertura de “Crise política”, como o caso de textos como “Bolsonaro faz apelo por reabertura e fala em ‘exagero’ no enfrentamento da pandemia” (publicada em 22/06/20 na Folha) ou “Can We Call Trump a Killer?” (“Podemos chamar Trump de assassino”, editorial de 24/06/20 do NYT).
Os resultados evidenciam que informar sobre ciência e combater a desinformação de autoridades sobre a pandemia podem ter recebido o mesmo peso da imprensa. No período analisado, o predomínio da cobertura da Folha e do NYT foi de reportagens sobre impactos sociais da pandemia — como desemprego e fechamento das escolas.
“Identificamos que, mesmo durante uma crise de saúde pública como a Covid-19, abordar pautas sobre ciência não foi, especificamente, uma prioridade durante o período analisado”, explica Mariana Hafiz, pesquisadora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Universidade de Campinas (Labjor/Unicamp). O trabalho tem co-autoria de Sabine Righetti, Natália Flores e Fernanda Andrade — pesquisadoras também vinculadas ao Labjor/Unicamp e à própria Agência Bori — e do cientista de dados Estêvão Gamba.
Hafiz também destaca que o material jornalístico produzido sobre a pandemia de Covid-19 não se restringiu apenas às editorias de saúde e ciência, mas também apareceu com bastante frequência em sessões de economia, política e esportes — como já tinha sido apontado em levantamentos anteriores, que apontavam que o conteúdo científico se espalha pelos veículos de comunicação.
Folha de São Paulo e The New York Times foram selecionados pela relevância de ambos em seus respectivos países e similaridades na proposta editorial. Hafiz informa que ambos podem ‘pautar’ a imprensa, ou seja, as notícias publicadas influenciam os assuntos presentes em outros jornais, a chamada agenda-setting. Em efeito cascata, a influência também pode gerar discussão entre o público não especializado. “O que vimos é que a imprensa parece ter dado o mesmo peso para cobrir ciência e para cobrir a crise política”, explica a pesquisadora.
Poucas mulheres
O estudo também mostra que, apesar de mulheres cientistas assinarem metade dos artigos científicos no Brasil, elas foram minoria entre as especialistas ouvidas. Apenas uma em cada quatro cientistas citadas na reportagens da Folha sobre a pandemia no período analisado são mulheres (pronome feminino). “Cientistas mulheres estão mais concentradas justamente nas áreas de saúde, ligadas a temáticas da Covid-19. Portanto, era de se esperar mais mulheres sendo porta-vozes”, diz Hafiz — que defende análises mais profundas sobre gênero e mídia.
Ao todo, foram identificadas 59 fontes consideradas ‘científicas’ no conteúdo analisado. São profissionais descritos como pesquisadores, professores universitários, médicos e membros de organizações e sociedades científicas, mobilizados por jornalistas com a intenção de falar sobre seus próprios estudos e/ou comentar eventos ou pesquisas recentes. Destas, 26 fontes (44% delas) foram citadas em conteúdo de “Ciência e novas pesquisas”. “Isso significa que mais da metade dessas fontes estão analisando, à luz de evidências científicas, fenômenos reportados em textos classificados como Cobertura internacional, Crise política, Cenário da pandemia, Histórias de pessoas e Impactos da pandemia”, ressalta Hafiz.
“O estudo se restringiu a um recorte temporal de uma semana específica, que, portanto, não pode ser extrapolado para a cobertura jornalística de toda a pandemia”, diz Sabine Righetti, co-autora do trabalho. “É, no entanto, um período típico e simbólico do primeiro ano pandêmico e traz evidências fortes de cobrir o enfrentamento atrapalhado da pandemia no Brasil e nos EUA tiveram o mesmo peso que informar sobre ciência.”