Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Alexandre Briozo Gomes Filho. Para acessar, clique aqui.
Cidade | A partir da análise de três acontecimentos históricos da capital, pesquisadora observou como se deu, ao longo dos anos, o processo de “higienização” de espaços ocupados pela população negra
*Foto: Paisagem da Ilhota nos anos 1950/ Arquivo pessoal
“É evidente que os brancos não promovem reuniões secretas às cinco da manhã para definir como vão manter seus privilégios e excluir os negros. Mas é como se assim fosse”, resumiu a psicóloga e ativista Cida Bento sobre o que chama de “pacto da branquitude”. Do mesmo modo, no plano geral de melhoramento de Porto Alegre de 1914 não estava escrito que avenidas precisavam ser abertas para que os negros deixassem os espaços que ocupavam, mas assim aconteceu. Diante do cenário de crescente desigualdade na capital gaúcha, uma dissertação de mestrado do Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional da UFRGS analisou como a estrutura urbana de Porto Alegre foi construída, ao longo dos anos, em um processo de “higienização” de espaços antes ocupados pela população negra e o consequente apagamento dessas pessoas em prol da aquisição do “moderno”, cujo usufruto era e ainda é feito majoritariamente pela população branca.
Vitória Kramer de Oliveira, autora da pesquisa, partiu da metodologia de análise de cenas, em que ela observou três acontecimentos históricos da cidade de Porto Alegre: a construção da avenida Borges de Medeiros, onde antes havia o Beco do Poço; os campos da Redenção, que levavam esse nome em homenagem à libertação dos negros escravizados do terceiro distrito da capital, onde hoje é o Parque Farroupilha; e o desmembramento do território da Ilhota e a sua substituição por um plano de bairro para abrir grandes avenidas e canalizar o Arroio Dilúvio. Para a pesquisadora, esses eventos evidenciam a tensão entre planejamento urbano, idealização da cidade, o que isso representa na prática e quem são as pessoas afetadas por esses planos.
“Analisando os planos que eram imaginados para a cidade, desde 1914, mais ou menos, a gente percebe claramente um ideal de cidade que não falava obviamente de raça, mas quando se percebe na prática como esse planejamento urbano era efetivado — as reformas, a higienização —, existia um componente racial muito claro”
Vitória Kramer de Oliveira
Por meio de análises de jornais da época, a pesquisadora entendeu como eram feitas essas estigmatizações de quais espaços deveriam ser higienizados – espaços que, coincidentemente, eram ocupados por uma população preta e pobre. Mas o que a pesquisadora defende em sua tese é que esse processo não se trata de uma coincidência. “Quando acontecem várias coincidências ao longo da história, a gente começa a notar um padrão de comportamento, e não algo que aconteceu ao acaso”, afirma.
Desinvisibilizando a branquitude
Vitória partiu de sua própria experiência racial para dar um tom central na forma como abordaria o tema da pesquisa. Como uma mulher branca, ao pesquisar sobre o apagamento da negritude em Porto Alegre, o seu receio era de estar reivindicando um lugar de fala que não lhe cabia propriamente. Sendo assim, mesmo explorando estudos equivalentes de pesquisadores negros sobre memória e apagamento, seu aporte teórico foi a desinvisibilização da branquitude enquanto raça predominante nesses projetos urbanos, evidenciando-a. “Eu tive que introduzir muito essa visão de branquitude, que não se tinha na época do planejamento urbano nas leituras que eu estava fazendo”, comenta.
Rachaduras na história de Porto Alegre permitiram que essas narrativas ressurgissem. A partir da Lei de Cotas, o maior acesso de pessoas negras à universidade proporcionou o aumento de trabalhos acadêmicos sobre raça. Vitória conta que o grande alicerce que possibilitou a realização da pesquisa foi o trabalho de outros intelectuais e pesquisadores negros, tanto da UFRGS quanto da PUCRS. Dentre estes, ela cita Daniele Vieira, cuja pesquisa possui uma perspectiva geografizada e cartografada da memória dos territórios da comunidade negra da cidade.
Mais importante do que a realidade de um lugar é a imagem que se tem dele. “No Sul, no Rio Grande do Sul e em Porto Alegre, por exemplo, a gente construiu uma imagem de cidade, de população branca europeia, descendente de alemães, italianos e portugueses”, detalha a pesquisadora. Em contrapartida, as existências e manifestações culturais negras presentes na região, no estado e na cidade são postas de lado em virtude da prevalência dessa raiz europeia, cuja origem reside num trabalho benfeito de construção identitária.
A respeito do que predomina no campo urbano atual, Vitória destaca que a produção desse tipo de higienização na cidade é algo que se mantém.
“Acho que vale pensar em qual modelo de cidade a gente segue reproduzindo. Onde moram as pessoas brancas e as pretas? Elas frequentam os mesmos espaços de lazer? Quem é mais privilegiado para ter a sua história preservada na cidade e quem não?”
Vitória Kramer de Oliveira
Diferente do início do século passado, letramento e consciência racial estão em evidência no debate público, “apesar da falsa preocupação com a questão racial no campo político municipal”, ressalta a pesquisadora. A expectativa de Vitória é que a pesquisa contribua para mais debates e reflexões em torno de questões raciais nos planejamentos urbanos.
Mesmo sem saber o que pretende pesquisar a seguir, Vitória não descarta a possibilidade de um doutorado. Sua perspectiva de estudos é seguir uma linha crítica que lhe permita criar tensionamentos em torno do que é dado como concreto ou fatídico. O caminho que ela pretende seguir enquanto profissional é o da diferença. “Acredito muito que a ciência dá lugar pra essa potência de mudança, de enxergar coisas novas e de quebrar velhos paradigmas. Há um componente importante de mudança social e política dentro da pesquisa em ciências humanas e sociais”, observa.