Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Lucas Tillwitz e Fernanda Simoneto Machado. Para acessar, clique aqui.
Maternidade | Estudantes brasileiras têm direitos assegurados desde 1975 caso engravidem durante o período em que estão matriculadas em instituições de ensino, mas licença-maternidade é insuficiente para a maioria das mulheres, que buscam apoio em coletivos e assistência estudantil
“Absolutamente tudo mudou.” É assim que Ana Girardello, 29 anos, define sua vida após o nascimento do filho. A estudante de Teatro se encaminhava para o final da graduação quando descobriu a gravidez e decidiu trancar o curso. De volta à Universidade, Ana avalia que não poderá dedicar-se da mesma forma aos estudos. “Eu sei que vou ter que fazer o meu curso do jeito que dá. É um pouco triste para mim.”
Maioria nas universidades brasileiras, segundo o último Censo de Educação Superior, as mulheres ainda enfrentam barreiras dentro da academia. Por vezes um tabu, a maternidade durante a graduação exige mudanças na rotina das estudantes, que enfrentam obstáculos impostos pelas universidades e pelo poder público.
“Não se fala muito disso. A gestação em ambiente estudantil é um tabu e fica muito restrita ao ambiente doméstico”
Ana Girardello
Foi a partir dessa percepção que, durante a pandemia, estudantes criaram o grupo Mães na UFRGS. O coletivo nasceu como um espaço seguro para que mulheres compartilhassem suas experiências e se apoiassem. A semelhança nos relatos fez com que elas se organizassem politicamente, a fim de demandar uma postura da instituição. Durante a pandemia, elas encaminharam uma carta ao Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE), solicitando mudanças imediatas no Ensino Remoto Emergencial (ERE), como a ampliação dos prazos de entrega das atividades. Com o retorno ao presencial, elas seguem mobilizadas.
Experiência diversas
Segundo dados obtidos pelo JU, desde 2012, 555 estudantes solicitaram a licença-maternidade junto ao Departamento de Atenção à Saúde (DAS). Em 2020, quando a UFRGS interrompeu suas aulas presenciais, o número de pedidos teve uma queda significativa: foram 20 licenças em 2020 ante 65 solicitações feitas em 2019. Em 2021, apenas cinco estudantes fizeram o pedido. Dentro da Universidade, uma resolução do CEPE garante a licença-maternidade de 120 dias, com possibilidade de extensão por mais 60 dias. Já a licença-paternidade se restringe a oito dias.
Thaís Moreira Totti, 26 anos, hoje formada em Medicina Veterinária, estava no 7.º semestre quando descobriu a gestação. “Eu engravidei sem querer. Quando descobri, eu estava no período de encomenda de matrícula, e eu mantive as disciplinas que iria fazer naquele semestre”, conta.
Durante a gestação, Thaís teve uma complicação médica, o que exigiu que a jovem se afastasse das aulas com mais antecedência que o previsto. Na época das matrículas, a jovem decidiu se inscrever em disciplinas com uma carga mais leve, afinal, sabia que seria necessário se afastar perto do período de provas. “O primeiro obstáculo foi a Comgrad [Comissão de Graduação]”, relata Thaís. “Perguntei quais disciplinas que eu poderia fazer e se eles poderiam conversar com os professores e avisar que eu ganharia bebê e entraria em licença-maternidade. Nesse momento, a Comgrad se absteve. Eles não quiseram entrar em contato com os professores e disseram para eu fazer as disciplinas que eu achasse e que entrasse em contato com os professores.”
Segundo a técnica em Assuntos Educacionais no Núcleo de Ensino da Medicina Veterinária, Patrícia Silveira da Costa, o setor procura atualmente acolher as estudantes de maneira integral, prestando atendimento e considerando as particularidades de cada situação. “A gente costuma orientar as estudantes gestantes conforme o caso. Depende de qual a previsão de nascimento do bebê, em que momento do semestre ela está, se é no início, se é no meio, se é no final, em quais disciplinas está matriculada, se são disciplinas de cunho mais teórico ou se têm prática. Então cada caso é um caso. Não existe uma regra absoluta.”
“A orientação que a gente segue é a que existe na Resolução 11/2013 da UFRGS. Não existe uma resolução específica da Comgrad da Veterinária a este respeito”
Patrícia Silveira da Costa
O tratamento descentralizado permite que cada docente lide com a questão da forma que considerar melhor. Thaís relata que um dos seus professores argumentou que não seria justo que ela não assistisse às aulas e fosse aprovada da mesma forma que os colegas. Thaís, no entanto, estava em licença-gestante concedida pela própria Universidade. A lei brasileira garante a todas as estudantes que engravidem o direito de realizar as provas finais sem nenhum prejuízo.
As diferentes formas como as unidades lidam com as estudantes grávidas fazem com que cada uma tenha uma experiência distinta. Gabriela Duarte Assis, 29 anos, estava no primeiro semestre do curso de Pedagogia quando descobriu a gravidez, em 2019. Ela solicitou a licença-maternidade e recebeu um plano de ensino adaptado com atividades com entrega prevista para o final da sua licença. Ao final do prazo, por conta das demandas da filha bebê, a estudante não conseguiu entregar os trabalhos. “Foi aí que o setor da Faced [Faculdade de Educação] que lida com as gestantes entrou em contato com os professores para negociar”, relembra. “Todos os professores aceitaram e falaram que era possível [entregar as atividades com atraso]. E aí eu consegui ampliar um pouco o período.”
“Acho que falta um plano de ação mais geral da Universidade para coordenar condutas. Qual é o papel da Comgrad? Dos professores?”
Thaís Moreira Totti
Redes de apoio
Com o retorno às aulas após o fim da licença-maternidade, as estudantes precisam buscar alguém para cuidar dos seus filhos, mas o processo muitas vezes esbarra no déficit de vagas em creches no município de Porto Alegre. O ensino não é obrigatório para essa faixa etária, mas é dever do poder público municipal garantir vaga para as crianças.
Tâmisa Fleck, 35 anos, estuda Agronomia na UFRGS. Em 2020, sua mãe, com quem dividia os cuidados do filho, hoje com 4 anos, faleceu. Desde então, Tâmisa é a única cuidadora dele. “No semestre em que voltamos para o presencial, eu não consegui ir a todas as aulas, e rodei por FF em todas as cadeiras.” O número de faltas maior do que o permitido ocorreu por conta de ela não ter conseguido vaga na educação infantil para o filho.
“Eu não consegui creche para ele. Agora ele faz quatro anos e é obrigatório, então vou ter que conseguir”
Tâmisa Fleck
Gabriela Assis compartilha da mesma dificuldade. Como a filha tem três anos, a estudante e seu companheiro não conseguiram uma vaga em creches municipais. “Eu trabalhava em uma escola no período da tarde, e não teria como eu passar a manhã toda na faculdade”, conta.
“A gente teve que fazer todo um remanejo na nossa vida, e já aconteceu de ter que trazer ela para a faculdade, ou de o meu companheiro ter que levar para a faculdade dele também”
Gabriela Duarte de Assis
Estudantes legalmente responsáveis por crianças com até seis anos de idade incompletos e que sejam atendidos pelo programa de benefícios da Pró-reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE) contam com o auxílio-creche. O benefício, no valor de 250,00 reais mensais por dependente, está, contudo, longe do necessário para custear uma vaga em uma escola de educação infantil em Porto Alegre, cujo valor médio das mensalidades é de 1.021,66 reais, conforme a Secretaria Municipal de Educação (SMED).
Segundo o diretor do Departamento de Benefícios e Acompanhamento Estudantil (DBA) da PRAE, Felipe Vendruscolo da Silva, o auxílio-creche, apesar do nome, tem como intuito pagar parte das despesas do público-alvo atendido, e não financiar vagas em instituições de educação infantil. “Este benefício é como uma forma de suporte para gastos que o estudante tenha. Ele não tem o objetivo exato de custear a mensalidade em uma creche particular. Por mais que ele tenha esse nome, ele não é vinculado a esse tipo de prestação de serviço”, afirma Felipe.
Ainda de acordo com o diretor, não há previsão de aumento do valor do benefício. “Cada vez há menos espaço para este tipo de discussão, muito em função do limite de orçamento. O que se tem priorizado é o auxílio-transporte, porque tem uma questão de indexação [correção de valores de acordo com índices oficiais de variação de preços] mais direta. E como atinge mais estudantes, [o auxílio transporte] acaba sendo uma prioridade. Mas sobre os outros auxílios não há uma discussão recente de reajuste”, aponta.
Desde a sua implementação na UFRGS, em 2009, o auxílio-creche variou de valor duas vezes, segundo o banco de dados de pagamentos da PRAE e editais de benefícios publicados entre 2011 e 2022. Inicialmente, o valor do benefício foi fixado em 75 reais. Três anos depois, em 2012, o auxílio passou à quantia de 90 reais. O próximo e mais recente reajuste ocorreu em 2016, quando o montante do subsídio passou aos atuais 250 reais.
Para as mães universitárias, a ausência de vagas em creches faz com que muitas tenham que levar seus filhos para a Universidade, cujos espaços não acolhem plenamente as crianças, segundo as alunas. “Não existe na UFRGS, no Câmpus da Saúde, da Agronomia e da Veterinária, estacionamento para gestantes”, aponta Thaís. “Nenhum dos câmpus em que eu tinha aula tinha trocador nos banheiros”, completa. Sua percepção é compartilhada por Gabriela. “Inaugurou na semana passada um banheiro com trocador, não tinha antes”, afirma.
“Não só a sala de aula, mas o ambiente acadêmico como um todo é um lugar de não pertencimento [para mães e crianças]”
Gabriela Duarte de Assis
Para Cecília Severo, participante do grupo Mães na UFRGS, assegurar o bem-estar de mães nas universidades “é garantir uma possível melhor colocação no mercado de trabalho, é garantir a possibilidade de melhora de vida da infância também”.
Maternidade indígena e acesso aos restaurantes universitários
Alice Domingos, 26 anos, cursa Fisioterapia na UFRGS. Indígena da etnia Kaingang, a estudante é oriunda da aldeia Votouro, em Benjamin Constant do Sul, município situado no noroeste do RS. Ela e a filha, desde seu nascimento, moravam na Casa do Estudante (CEU). No início de 2022, elas passaram a viver na Casa do Estudante Indígena (CEI). Um dos principais argumentos das estudantes era a necessidade de terem as crianças próximas. “É da nossa cultura ter nossos filhos perto. Tu nunca vai ver uma mãe indígena sem os filhos”, explica.
Antes da mudança de casa, sem conseguir vaga em creches municipais, Alice tinha que deixar a filha durante todo o dia na CEU, um espaço que não é pensado para crianças. “Aqui [na CEI] é um espaço mais adequado para uma criança. É cercado, ela pode brincar no pátio, tem a convivência com outras crianças indígenas também”, conta a estudante. A conquista da CEI foi, também, a possibilidade de a sua filha ser criança.
Apesar da conquista de uma casa de estudantes própria, a acadêmica relata que muitas mulheres indígenas já foram impedidas de acessar as dependências da Universidade, como os restaurantes universitários, acompanhadas de seus filhos. “Eu não sinto que é um lugar para mim e para minha filha. Eu me sinto constrangida quando vou no RU”, protesta.
De acordo com a diretora da Divisão de Alimentação (DAL) da PRAE, Diuliane Trindade da Silva, tanto os porteiros quanto os profissionais da empresa terceirizada “sabem que eles [mães e pais indígenas acompanhados de seus filhos] podem acessar o restaurante universitário”. Em caso de qualquer constrangimento contra crianças e seus responsáveis nas dependências dos restaurantes da UFRGS, Diuliane orienta aos alunos contatar um fiscal e narrar o acontecimento. “O ideal é comunicar a Universidade através de algum fiscal da UFRGS, que provavelmente estará acompanhando o almoço, e relatar o ocorrido. Se possível, identificar quem foi, porque então a gente consegue falar diretamente com a pessoa”, afirma.
Segundo Diuliane, é essencial que mães e pais fiquem atentas e atentos às condições para o acesso de crianças nos restaurantes da UFRGS. Conforme a diretora, podem usufruir do serviço apenas crianças com até cinco anos de idade e que estejam acompanhadas de, no mínimo, um responsável legal, o qual deve ser estudante da Universidade. Para comprovar ligações com a criança e com a instituição, basta o aluno apresentar um documento simples do dependente que comprove parentesco e um documento que ateste vínculo do estudante com a instituição. O acesso de crianças aos restaurantes universitários é gratuito, mesmo para filhos de estudantes que não são beneficiários da PRAE.