Qual é o papel do jornalismo frente à barbárie?

Publicado originalmente em ObjETHOS. Para acessar, clique aqui.

Álisson Coelho
Doutor em Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e pesquisador associado do ObjETHOS

As cenas beiram o surrealismo para os padrões brasileiros. Em um país marcado por tantas violências, ataques em massa em escolas pareciam não fazer parte da nossa realidade. Mais do que isso, causava alguma estranheza ver, vindas dos Estados Unidos, imagens de episódios como o de Columbine, massacre escolar ocorrido em 20 de abril de 1999 e que, portanto, nesta semana completa 24 anos. Os últimos anos mostraram que, ao contrário do que supúnhamos, somos cada vez mais vulneráveis. Um cenário de medo que, não raro, recebe contribuições de uma imprensa que ainda não sabe como cobrir esses casos.

O papel do jornalismo na cobertura da barbárie, da intolerância e do radicalismo é tema de um tópico da newsletter publicada pelo ObjETHOS na semana passada. Essa, no entanto, é uma discussão que precisa necessariamente ser ampliada, especialmente em um momento no qual a sociedade brasileira habituou-se a utilizar a violência como reposta-base para muitos dos nossos problemas. Mesmo essa disposição à violência, vista como respondemos aos nossos problemas coletivos, traz consigo uma responsabilidade da qual a mídia brasileira não pode fugir. As novas e as “velhas” mídias.

Uma mãe ouve a confissão do assassino da filha ao vivo e quase desmaia. No canal seguinte, um homem é levado por uma enchente, enquanto se afoga ao vivo em rede nacional. Helicópteros sobrevoam as capitais do Brasil e o objetivo é sempre o mesmo: encontrar a violência e transmiti-la com a maior dose de sensacionalismo possível. Quanto mais barbárie, mais audiência, em um ciclo que se retroalimenta e torna apresentadores celebridades com salários milionários. Tudo ao vivo, em televisão aberta, durante boa parte das tardes da família brasileira.

Em um dos podcasts mais ouvidos do Brasil o apresentador defende ao vivo que o país tenha um partido nazista legalizado. No Twitter, adolescentes falam abertamente sobre atacar escolas. No Litoral do Rio Grande do Sul, a polícia encontra o quarto de um adolescente de 14 anos repleto de símbolos nazistas e fascistas, com bandeiras e fotos de Hitler e Mussolini. Ele também estaria preparando um ataque.

Todos esses casos parecem não ter uma relação direta, mas compõem um cenário no qual a violência vende e o extremismo gera conexões. O sensacionalismo dos programas televisivos normalizou a barbárie, e estabeleceu que a resposta a ela passa, necessariamente, por mais violência, as redes transformaram o extremismo em um negócio ainda mais lucrativo. Nada engaja mais do que a violência, o extremismo e um ambiente em que a oferta algoritmizada de conteúdo busca justamente engajar.

Em comum, a “velha” e a “nova” mídia tem a falta de regulação e a baixa responsabilização de seus proprietários. Juntas, contribuem decisivamente para esse cenário extremo vivenciado nos últimos meses. Agora, suas responsabilidades precisam ser revistas. Mais do que pensar nas práticas passadas, é preciso analisar o presente e o futuro. A radicalização não é um traço unicamente brasileiro, mas a repetição de casos de violência coloca a todos em alerta.

Mudanças de rumos

Após os recentes ataques em escolas, parte da imprensa brasileira tradicional mudou de posicionamento na cobertura dos casos. Nomes dos agressores, imagens dos ataques e outros detalhes deixarão de ser veiculados. A decisão já foi refletida nas reportagens sobre o ataque ocorrido em Blumenau, no último dia 5 de abril. Globo e Band, dois dos principais canais de TV aberta do país, são alguns dos veículos que adotaram a nova postura. O grupo O Estado de S. Paulo foi na mesma linha. Mas, ainda é pouco.

O ressurgimento global do autoritarismo apresenta desafios muito mais significativos para a imprensa. Mais do que um enquadramento voltado ao factual, é preciso contextualizar a sociedade brasileira em torno do problema. Na entrevista que deu ao podcast Pauta Pública, a jornalista Marie Declercq, que estuda fenômenos correlacionados em grupos na internet, chama a atenção para o debate raso visto na imprensa.

A maior parte dos grupos radicalizados sequer são amplamente conhecidos. Esse silenciamento em torno do funcionamento deles, em um contexto de plataformas que estimulam a oferta de conteúdo a partir do engajamento que ele gera, faz do extremismo um fenômeno extremamente espraiado em rede, mas pouco discutido pelos brasileiros. É preciso inverter essa lógica.

Como jornalistas, nossa colaboração possível neste cenário vem com a arma mais forte que temos: a informação. Aprofundar o debate é fundamental para que pais, professores e autoridades estejam atentos. Investigação jornalística de qualidade, ampliação das fontes que falam sobre esses temas – para além do aparato da segurança pública e o mapeamento do radicalismo em rede são contribuições práticas que o jornalismo pode e deve oferecer.

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