8 de março: mulheres e a urgência da luta por libertação ontem e hoje

Publicado originalmente em Brasil de Fato. Para acessar, clique aqui.

Por Carla Benitez*

8 de março é um dia histórico de luta das mulheres. Todo dia é nosso dia, nossa luta é todo dia, mas sabemos da importância de pararmos o país (e o mundo!) neste dia de celebração e de protesto pela libertação de todas as mulheres e, por consequência, das classes trabalhadoras e das pessoas oprimidas como um todo.

Não por uma coincidência, foi um levante de mulheres trabalhadoras – tecelãs e costureiras de Petrogrado – que abriu avenidas para a Revolução Russa desfilar no século XX como um acontecimento determinante de seus rumos e das próprias pautas e possibilidades da realização humana, em suas máximas potencialidades. Foi no dia 23 de fevereiro de 1917 – 08 de março de nosso calendário – que essas lutadoras pararam, soltando a voz por “pão para nossos filhos” e por paz. A Revolução de Fevereiro se ergueu desde este dia.

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Em 1921, durante a conferência das Mulheres Comunistas, realizada em Moscou, sob a defesa enérgica de Alexandra Kollontai, aprova-se o 8 de março como Dia Internacional das Mulheres, em homenagem à coragem, à força e à importância da greve das costureiras de 1917 e dando eco ao chamado feito por Clara Zetkin, em 1910, de que o Dia da Mulher deveria ser comemorado anualmente.

Em uma sociedade marcadamente desigual e opressora, as transformações profundas das relações sociais na Rússia garantiram a materialização de uma série de pautas e anseios que ainda permeiam, de diferentes modos, os horizontes reivindicativos das mulheres em luta hoje, em todas as partes do mundo.

Na sua raiz profunda, as lutas históricas das mulheres são anti-sistêmicas e a Revolução Russa é demonstração histórica disso. Nossa reivindicação de igualdade na diversidade só pode ser plenamente concretizada com o definhamento das relações sociais capitalistas e a transcendência por outra sociabilidade radicalmente distinta.

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A tomada da mulher do espaço público e político e da socialização do trabalho doméstico e do cuidado familiar fez com que o próprio casamento enquanto instituição religiosa e civil fosse questionado na União Soviética.

Do mesmo modo, o tema do aborto surgiu como central deste processo e intimamente relacionado à não obrigação do casamento e, portanto, de uniões livres. Houve um inevitável avanço acerca da conscientização da importância da responsabilidade do Estado pela garantia do aborto. Isso fez com que a legalização do aborto fosse inédita mundialmente, um marco na história.

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Entretanto, muito longe de idealizações, ao contrário disso, reconhecendo o quanto não há de automatismo, sendo a luta contra o racismo e o sexismo uma constante, é importante frisar que mesmo em sociedades em transição revolucionária não houve nem haverá superação automática das opressões decorrentes da mera tomada do Estado pelos trabalhadores e trabalhadoras.

Dessa maneira, o ódio às mulheres e o controle do corpo feminino como expressão do capitalismo patriarcal não estava superado na transição revolucionária soviética e são muitas as marcas de violência, por exemplo, na realização institucional do aborto e em resistências a tantas outras mudanças nas relações de gênero.

Dando saltos ao presente, desde este legado de luta das soviéticas, o século XXI vem demonstrando a radicalização e centralidade das pautas feministas, a serem tomadas com seriedade pelo movimento das classes trabalhadoras, para que este possa ir, verdadeiramente, às suas últimas consequências.

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Os anos 2000 e as décadas que seguem apontaram para um desenho marcante de uma crise da ordem do capital de outra qualidade, conjugando a crise econômica em grau estratosférico da etapa de financeirização do capital com as crises ecológicas, do mundo do trabalho e da reprodução social da vida.

O papel dos grupos oprimidos, em especial os atinentes às relações de gênero, raça e sexualidade, é cada vez mais central, sendo suas demandas calcanhar de aquiles de um sistema que precisa da intensificação de instrumentos de criação de desigualdades entre pessoas e instrumentos institucionais de violência direta para garantir possibilidades de sua acumulação, reprodução e expansão.

As mulheres estão protagonizando processos de resistência em todos os cantos do mundo. Em 2016, a resistência histórica das polonesas pelo direito ao aborto. Em março de 2018, a greve feminista das espanholas por 24 horas. Na Argentina, após o assassinato de Lucía Perez, o movimento Ni una menos, a reverberar e se multiplicar internacionalmente, especialmente na região da América do Sul.

No Brasil, do “Fora Cunha” ao “Ele não”, passando pelas poderosas Marcha das Margaridas, Marcha das Mulheres Negras e Marcha das Mulheres Indígenas. As conquistas das argentinas, chilenas e agora as colombianas na pauta atinente à legalização do aborto e justiça reprodutiva.

Isso tudo vem aprofundando o significado político transnacional do 8 de março, voltando a adquirir um caráter radicalizado e de solidariedade internacional. Não à toa, é nesse mesmo território que testemunhou o levante soviético que hoje encara suas mulheres feministas dizendo não à guerra da Rússia contra a Ucrânia, denunciando o quanto a guerra é misógina e que precisamos ser anti-coloniais e anti-imperialistas, indo contra a violência das fronteiras no capitalismo.

A reivindicação de não conceber como acessória a luta das mulheres converte, no século XXI, o feminismo enquanto pauta política internacional, que deve ser, necessariamente, anticapitalista, decolonial, antirracista, ecossocialista, reconfigurando as noções de greve e trabalho e unindo as pautas da produção e reprodução social, superando as falsas dicotomias entre pautas identitárias e as políticas da classe trabalhadora.

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No Brasil de 2022, temos a mais bem acabada simbiose de uma política econômica ultraliberal, marcada pelas mercantilização e precarização mais agudas da vida e a retirada de direitos sociais, com a implementação de políticas de restrição de liberdades públicas fundamentais e retrocessos nos direitos sexuais, reprodutivos e identitários.

Os pacotes de maldades que se impuseram sobre derrotas do povo brasileiro se traduzem como a maior feminização da pobreza; a necessidade de trabalho, terra e moradia para muitas das famílias populares cujo sustento depende integralmente das mulheres; a intensificação dos trabalhos doméstico e de cuidados, predominantemente femininos, com o sucateamento dos serviços de educação e saúde públicos; o aumento do feminicídio e das múltiplas violências contra mulheres.

Assim, parece-nos urgente a percepção de que a luta pela vida digna e plena de todas as mulheres só possa ser compreendida como uma necessária luta contra Bolsonaro e o bolsonarismo.

A liberdade é nossa condição e a luta nossa arma de libertação. Neste 8 de março as mulheres encherão as ruas deste país, sem medo de lutar por seus direitos, por um outro mundo possível!

*Carla Benitez é Professora da UNILAB, atual coordenadora do GT Gênero e Sexualidade do IPDMS – em parceria com Mariana Prandini -, militante da Insurgência, corrente interna do PSOL.

**Leia outros textos da coluna Direitos e Movimentos Sociais. Autores e autoras dessa coluna são pesquisadores-militantes do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, movimento popular que disputa os sentidos do Direito por uma sociabilidade radicalmente nova e humanizada.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rebeca Cavalcante

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