Taise Souza Barfknecht e Thiane Ávila – A “banalidade do mal” e os perigos do discurso sem limites

Publicado originalmente em Observatório da Comunicação Pública – OBCOMP. Para acessar, clique aqui.

As pesquisadoras do Núcleo de Comunicação Pública (Nucop) da Ufrgs, Taise Souza Barfknecht e Thiane Ávila abordam os riscos da propagação de narrativas de dúvida sobre verdades históricas e de fake news. Como escrevem as autoras “A deturpação da liberdade de expressão concretiza-se quando um posicionamento individual ameaça a existência de outrem”. No reflexão, as autoras acionam o conceito de “banalidade do mal” de Hannah Arendt. 

Em seu vídeo “Narrar o mundo”, Rita Von Hunty (2022) é certeira ao dizer que “onde morre a dúvida, nasce o autoritarismo”. O constante estado de dúvida representa um elemento fundamental para a organização social, bem como para a constituição dos sujeitos nos mais variados contextos. Nesse sentido, a preservação da memória sobre diferentes tempos históricos permite incorporar aprendizados a partir da própria experiência humana, a fim de garantir que episódios de guerra e genocídio não voltem a se repetir. Em outras palavras, compreender as características e os discursos vigentes em diferentes tempos confere um constante estado de vigilância para que os horrores vivenciados em outros momentos da história não sejam encarados como episódios do passado e, por isso, superados; mas sim como resultados de projetos sociais, políticos e discursivos que permitiram sua instauração e manutenção. Ao mesmo tempo, uma educação para a memória possibilita a manutenção de princípios conquistados a partir das lutas sociais, como os direitos humanos, a cidadania e a própria construção da democracia.

Entretanto, essa memória deve estar aliada ao processo de reflexividade, ou dúvida constante, repensando posicionamentos a partir de novos olhares, encontros e conhecimentos. Afinal, quando a distância dos fatos se apoia no desconhecimento, pode resultar em opiniões preconceituosas e descomprometidas com a coletividade. Essa preocupação deveria nortear o imaginário social e, especialmente, das figuras públicas e de profissionais do campo da comunicação.

Com o advento da internet e das redes sociais digitais, vivemos em um momento histórico onde a comunicação está mais horizontalizada e desterritorializada, e pessoas comuns passaram a exercer posições de influência para grupos sociais específicos. Ao mesmo tempo, encaramos o desafio da desvalorização das ciências, da desinformação e da despolitização. O vasto universo que promete a diversificação de saberes é também seara para a disseminação de fake news, bem como posturas reacionárias e intolerantes que pensávamos estarem há muito ultrapassadas. Apoiados em uma rasa compreensão de “liberdade de expressão”, figuras influentes podem reafirmar discursos de ódio que, em sua própria gênese e sentido, atentam contra a vida humana. E, como alerta Rita Von Hunty (2022), “as narrativas estão contidas no seu tempo e são reflexos de projetos políticos. Narrar o mundo não revela o mundo, mas revela uma visão de cultura, um posicionamento político e um projeto social” (VON HUNTY, 2022).

A deturpação da liberdade de expressão concretiza-se quando um posicionamento individual ameaça a existência de outrem. Nesse sentido, pode-se observar uma tendência neoliberal levada ao extremo, em que o indivíduo se vê isolado e incapaz de enxergar como o exercício da sua liberdade afeta outras agências – e, até mesmo, existências. Para corroborar com essa problematização, o conceito de “banalidade do mal”, cunhado por Hannah Arendt (1999), fornece importantes chaves de leitura sobre esses comportamentos. Ao acompanhar o julgamento de Eichmann, oficial nazista responsável pela eliminação de centenas de milhares de judeus, ciganos, “comunistas”, pessoas negras e LGBTQI+ durante a Segunda Guerra Mundial, a autora surpreendeu-se ao encontrar um sujeito comum, que afirmava estar “somente cumprindo ordens” sem nenhuma reflexividade sobre seus atos. Assim, Arendt (1999) analisou a banalização da racionalidade nem sempre a serviço do bem estar coletivo e, nesse caso, utilizada contra a humanidade.

Incorporando a “banalidade do mal” ao contexto contemporâneo, existe uma crescente onda de posicionamentos autoritários e preconceituosos rotulados como meras “opiniões”, ratificados por figuras públicas e mesmo políticas. Apesar da indignação com esses acontecimentos, torna-se importante reconhecer o fenômeno e os perigos que suscita, pois os discursos podem forjar posturas, coletividades e projetos políticos que, por sua vez, determinam o curso das sociedades. Dessa forma, acionar dispositivos legais e combater a intolerância deve ser um compromisso coletivo em todos os momentos e, especialmente, em um ano de eleições.

Por isso, pensar a respeito da responsabilidade que sustenta atos e falas amplia o compromisso cidadão dos indivíduos que, de alguma forma, contam com uma audiência que amplifica seus discursos, através das redes sociais digitais. Nesse sentido, a linha tênue que separa a liberdade de expressão da violência direcionada a determinados grupos historicamente rejeitados fica borrada quando valores e princípios humanitários são postos à prova e ameaçam as bases da democracia e da justiça.

Atualmente, não faltam exemplos de atos que ilustram a tentativa de legitimação de discursos de ódio velados ou explícitos, isto é, que emergem ancorados no pretexto da liberdade de opinião e, por isto, se sentem blindados até certo ponto. A partir dos conteúdos que os mesmos suscitam e naturalizam, pode-se notar o papel central que as ideologias assumem no imaginário social. Como aponta Chauí (1984, p.30), “a ideologia não é um processo subjetivo consciente, mas um fenômeno objetivo e subjetivo involuntário produzido pelas condições objetivas da existência social dos indivíduos”. Nesse caso, importa refletir a condição parcial de qualquer enunciado tomado por ideias ideológicas, prontas a agirem irrefletidamente sobre a totalidade de um povo. Em discursos que violentam existências, esse teor reacionário mostra-se de maneira ainda mais evidente, já que, por suspender a diversidade, agem em prol de uma única versão da realidade, exposta e amparada aparentemente pelos mesmos argumentos que validam o debate dentro dos sistemas democráticos.

Uma das grandes questões que o contexto contemporâneo traz à luz é justamente a de problematizar a materialidade sobre a qual a produção de narrativas é feita. Por isso, torna-se salutar destacar o papel ativo que o ambiente digital exerce em relação aos efeitos desses discursos e da maneira como potencializa a expressão ideológica desintermediada. Dito de outra maneira, é preciso que se leve em consideração o apagamento de certos limites no contexto digital, já que, ao se tratar de uma realidade de intensa abstração, a presença de falas totalizantes e descontextualizadas tem seu poder de influência ampliado. Nesse sentido, não se trata apenas de analisar o teor dos conteúdos, mas tensionar as condições diversas de sua recepção, que se enreda em contextos absolutamente plurais e, por isso, de certa forma incontroláveis.

Apesar da profusão de conteúdos falsos e com um raso embasamento teórico nessas redes, fontes confiáveis promovem um contra movimento ao disseminarem informações verídicas e importantes problematizações, acionando diferentes áreas do conhecimento e compromissadas com seu contexto socio-histórico de produção. Entretanto, a indignação ocasionada pelo discurso sem limites e que fere existências pode ser mobilizadora, inclusive, de pessoas que não compactuam com esses posicionamentos. E no âmbito da internet, mesmo o compartilhamento da aversão e da discordância pode ser interpretado como “engajamento” pelos algoritmos. 

Nesse sentido, é preciso tecer uma cadeia relacional empenhada em dar conta do máximo possível de meandros dos discursos, mas consciente de que sempre haverá novas possibilidades de investigação; afinal de contas, quando se trata de atribuição de sentidos, a matéria está sujeita a aprofundamentos dos mais adversos. No entanto, um dos pontos protagonistas dessa rede consiste no tratamento que esses discursos recebem formalmente, ou seja, pelas instituições democráticas e de como, a partir da educação dos indivíduos, é possível que se esclareçam certos aspectos basilares da história. Assim, tendo a valoração sistêmica da memória como aliada, traçar rotas que visem à formação política e cidadã da sociedade, entendendo que, em determinados suportes de comunicação, como as redes sociais digitais, a polêmica se potencializa e pode agir em prol da banalização do mal à medida que determinadas falas e atos são replicados. Nessa direção, contribui-se com a somatização da barbárie e com o alcance desenfreado de conteúdos que violentam e deslegitimam alguns dos principais princípios norteadores de uma democracia. Como contrapartida a essa dinâmica, importa investir em uma sólida educação digital, que não vise ao convencimento acerca do malefício supostamente natural dos ambientes digitais, mas sim de sua potência e da sua capacidade de democratizar os conteúdos e servir positivamente à sociedade. 

Referências

CHAUÍ, M.. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 2008.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. Tradução José Rubens Siqueira. — São Paulo : Companhia das Letras,1999.
VON HUNTY, Rita. Narrar o mundo. Youtube, 4 de fev. de 2022. Disponível em: <https://youtu.be/eaDfvChma3Q>. Acesso em: 06 de mar. de 2022.

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Sobre as autoras:

Taíse Souza Barfknecht 

Publicitária e especialista em Ciências Sociais pela UPF, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRGS. Integrante do Núcleo de Comunicação Pública e Política (NUCOP) e do Observatório da Comunicação Pública e Política (Obcomp).

Thiane Ávila

Relações Públicas e escritora, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRGS. Integrante do Núcleo de Comunicação Pública e Política (NUCOP) e do Observatório da Comunicação Pública e Política (Obcomp).

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