Sem apresentar provas, médica defende tratamento precoce para a Covid-19

Publicado originalmente em Nujoc Checagem por Márcio Granez. Para acessar, clique aqui.

Entrevista foi ao ar em março deste ano em programa de rádio de Natal-RN

A médica Kyvia Mota, do comitê científico da prefeitura de Natal-RN, defendeu o tratamento precoce para os pacientes com Covid-19, afirmando que se deve preservar a autonomia do médico e do paciente. A entrevista foi ao ar por uma rádio de Natal em março e está circulando novamente pelas mídias sociais. O aplicativo Eu Fiscalizo, da Fundação Oswaldo Cruz, encaminhou o material para checagem pela equipe do NUJOC.

 São trinta minutos de entrevista que aborda temas como tratamento precoce, o chamado “kit Covid” e a politização da pandemia. A médica, que é especialista em reprodução humana, integra o grupo “Médicos pela Vida”, movimento que defende o tratamento precoce para combater a Covid-19. Ela se diz a favor do tratamento, citando estudos que mostrariam a efetividade dele no combate à Covid-19. Kyvia Mota menciona uma meta-análise de 48 trabalhos e também faz menção a estudo conduzido pelo médico Vladimir Zelenko, para defender a efetividade do tratamento precoce.

Até o momento não há estudo que comprove de maneira definitiva a eficácia do chamado tratamento precoce para a Covid-19. A meta-análise mencionada pela médica não está referenciada por nenhum estudo considerado de excelência. Os estudos mais completos realizados até agora demonstraram a ineficácia e o potencial risco do uso de medicamentos como a hidroxicloroquina, a ivermectina e a azitromicina, usados pelos médicos que defendem o tratamento precoce. Nesta checagem da agência Aos Fatos, você confere por que não se pode falar em eficácia do tratamento precoce para a Covid-19. Nesta outra, do UOL, você confere os riscos do “kit Covid”.

O NUJOC já checou mensagem envolvendo o médico ucraniano-americano Vladimir Zelenko, defensor da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19, e mostrou que seus estudos não têm comprovação válida até o momento. Confira aqui.

A médica argumenta, no entanto, que, em casos de urgência como uma pandemia, o médico possui alternativas para tentar auxiliar o paciente, mesmo que elas não sejam reconhecidas como a melhor opção, em termos absolutos, pela Medicina Baseada em Evidências, movimento que preconiza que os procedimentos médicos devem seguir o método científico. A médica relativiza: “Os que dizem que são contra o tratamento precoce estão esperando a Medicina Baseada em Evidências. […] Acontece que a gente não tem tempo. Estamos no meio de uma pandemia, no olho do furacão. É como trocar o pneu de um carro com o carro andando. Então vamos usar outras ferramentas, existem outras ferramentas na medicina”.

De fato, a conduta do médico deve ser pautada pelo contexto, sendo permitido ao profissional, de comum acordo com o paciente, a aplicação de medidas de urgência a depender da situação, sempre observando a melhor evidência científica. É o que determina a Declaração de Helsinque, citada pela médica, que você pode conferir neste link da Wikipédia. Isso contudo não se aplica no caso do tratamento precoce, já que este, conforme as melhores evidências apontadas em estudos científicos, não tem eficácia e pode ser prejudicial ao paciente.

Medicina em xeque – A pandemia da Covid-19 explicitou o conflito na área médica entre defensores de tratamentos não comprovados e profissionais que se alinham às diretrizes oficiais da categoria. Na entrevista, esse conflito é comentado pelos jornalistas, que indagam a médica sobre as razões da politização e das muitas versões conflitantes sobre o tratamento contra a Covid-19.

Kyvia Mota diz acreditar que há interesses conflitantes entre as publicações científicas e a indústria farmacêutica, já que esta financiaria aquelas. A médica também afirma que a hidroxicloroquina foi demonizada: “Eu quero saber quantos pacientes morreram por hidroxicloroquina neste país”. Diz não ter perdido um só paciente para a Covid-19, levando a entender que isso se deu por causa do tratamento precoce.

É enganoso afirmar que o tratamento precoce foi a causa do suposto sucesso da médica em combater a Covid-19. Como ela mesma pondera, muitas pessoas vão se curar da Covid-19 pela resposta natural do sistema de defesa do organismo, e a resposta de cada organismo tem diversos fatores que a influenciam nesse processo. Estabelecer causalidade entre o uso de hidroxicloroquina e a cura, nesses termos, é enganoso e pode ser fatal, pois a experiência clínica do médico, embora seja um ponto de partida, não pode ser tomada como a palavra final quando se trata de saúde pública. Os especialistas alertam que é preciso avançar para os estudos mais completos, que incluem procedimentos como grupo de controle e randomização. Até o momento, todos os estudos dessa envergadura mostraram que o tratamento precoce não funciona, como você confere nesta matéria.

Embora defenda o tratamento precoce, que é ineficaz, a médica não pode ser considerada como “negacionista”, se entendermos pela expressão as pessoas que são sistematicamente contra as evidências científicas em favor de uma crença. Ao longo da conversa, Kyvia Mota demonstra ponderação diante de várias questões que são tabus para os negacionistas. Ao finalizar a entrevista, a médica defende a manutenção – em março deste ano – do isolamento social na cidade de Natal, o uso de máscaras e também a eficácia das vacinas contra a Covid-19, que já naquele mês estava em tendência de queda como resultado da imunização: “O número de idosos que têm adoecido caiu muito. Precisamos agilizar”.

A médica Kyvia Mota no estúdio da rádio: defesa, sem provas, da efetividade do tratamento precoce. Imagem: Captura de tela/Youtube

Notícias falsas ou inconsistentes por parte de médicos têm sido comuns no contexto da pandemia. A equipe do NUJOC Checagem já verificou várias mensagens em que médicos defendem remédios e tratamentos não reconhecidos pelas instituições da área da saúde. Nesta aqui o chamado “pai da cloroquina” volta atrás e reconhece a ineficácia do medicamento. Nesta outra checagem, médica atribui a causa principal da pandemia à falta de sol.

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