Ruralistas torturam dados para defender mudança em licenciamento

Publicado originalmente em Fakebook.eco. Para acessar, clique aqui.

Nas redes sociais, lobby agrário publica dados inverificáveis ou distorcidos para culpar meio ambiente por supostos atrasos em obras

A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), nome oficial da bancada ruralista, espalhou informações distorcidas ou inverificáveis nesta terça-feira (11) em redes sociais para defender o projeto do deputado Neri Geller (PP-MT) que altera a legislação do licenciamento ambiental no país. A proposta de lei foi repudiada por nove ex-ministros do Meio Ambiente em carta pública, pela Associação dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente, por servidores ambientais federais, pela principal sociedade científica do Brasil, a SBPC, por entidades ambientalistas e pela Sociedade Brasileira de Arqueologia, entre outros. A votação do projeto no plenário da Câmara está prevista para esta quarta-feira (12).

Fakebook.eco verificou abaixo algumas das alegações da FPA. Este post será atualizado com novas informações ao longo do dia.


“O Brasil tem hoje paradas mais de 5 mil obras do setor elétrico, de infraestrutura e saneamento básico, que impedem a geração de energia limpa e renovável, e a construção de ferrovias e rodovias, e o tratamento de água e esgoto em diversos municípios do país. E sabe por quê? Por falta de licenciamento ambiental.”

INSUSTENTÁVEL

Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) de maio de 2019 afirma que havia 14.403 obras paralisadas ou inacabadas no país. Entre os motivos da paralisação, apenas 1% era decorrente de questões ambientais. Em quase um quarto dos casos (23%), as obras foram abandonadas pela própria empresa, aponta o TCU.

A FPA cita os ministérios da Infraestrutura e do Desenvolvimento Regional como fontes da informação de que haveria 5.119 obras paradas no país. No entanto, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, mencionou em março de 2020 o número do TCU: “No final das contas, com esse tipo de falta de disciplina orçamentária nós geramos uma massa de 14 mil obras paralisadas.”

Esses números não batem com os da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Em artigo de setembro de 2019, o presidente da CNI, Robson Braga de Andrade, afirmou que havia 718 obras de infraestrutura paradas no país, entre elas 429 de saneamento.

Em fevereiro de 2021, Tarcísio reconheceu que atrasos são decorrentes de estudos de impacto ambiental sem qualidade técnica: “É preciso fazer um mea-culpa sobre isso e reconhecer que não vínhamos fazendo a nossa parte tão bem quanto o necessário. Estávamos cobrando do órgão ambiental uma velocidade no licenciamento, mas deixávamos de fazer a nossa parte”, disse o ministro. “Muitas vezes, o licenciamento trava por causa da baixa qualidade desses estudos. A gente estuda mal e, de repente, oferece um produto ruim para o órgão de meio ambiente analisar. É um aprendizado para nós.”

“Para se ter ideia, a CNI levantou que existem mais de 27 mil normas que regulamentam o assunto. O que gera insegurança jurídica e a consequente paralisação do crescimento do país.”

DUVIDOSO

Em 2013, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) apresentou proposta para aprimoramento do licenciamento ambiental em que afirma que há “mais de 27 mil normas federais e estaduais de meio ambiente” no país, citando “dados da Consultoria RC Ambiental, que computou todos os atos jurídicos da União, dos 27 Estados brasileiros e do Distrito Federal”. Esse número é maior que o de leis aprovadas no Brasil de 1946 a 2020.

Nem todas as normas de meio ambiente tratam de licenciamento. Mas, mesmo que os dados apresentados pela CNI estejam corretos, nada disso vai ser revogado pela lei que é discutida no Congresso. Portanto, o argumento não faz sentido.

Apenas 11 leis federais mencionam em seus dispositivos licenças ambientais. Destas, só duas tratam especificamente de licenciamento, a Lei da Política Nacional de Meio Ambiente, de 1981, e a Lei Complementar 140, de 2011. Também há 42 resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) em vigor com regras sobre licenciamento.

“O excesso na burocracia para o Licenciamento Ambiental gera atraso em obras que são indispensáveis para a sociedade (…).”

NÃO É BEM ASSIM

Análise de dados oficiais feita pelo Fakebook.eco mostra que de cada três Licenças Prévias (LPs) emitidas pelo Ibama em média duas (63%) tiveram a análise concluída pelo Instituto dentro do prazo.

Os dados são do período 2016-2019. Nesses quatro anos foram emitidas 97 LPs, das quais 61 tiveram a análise concluída no prazo previsto pela legislação. Os requerimentos incluem todas as tipologias do licenciamento ambiental federal.

Em relatório de 2008 sobre o licenciamento ambiental de empreendimentos hidrelétricos no país encomendado pelo governo federal, o Banco Mundial aponta que a maioria dos problemas no licenciamento ocorre durante a fase da Licença Prévia. O documento também mostra que os Estudos de Impacto Ambiental iniciais apresentados pelos empreendedores estavam incompletos e/ou insuficientes em todos os casos analisados.

De acordo com o relatório, o tempo total médio para entrada em operação de uma usina hidrelétrica no país, concluídas todas as fases do licenciamento, era de 6,5 anos. Nos EUA, de 4 a 5 anos, diferença que foi considerada uma “margem razoável”. Das 66 hidrelétricas analisadas no Brasil, menos da metade (27) ultrapassou a data prevista nos contratos para entrada em operação.

Em outro estudo, de 2016, o Banco Mundial voltou a destacar a baixa qualidade dos Estudos de Impacto Ambiental.

Consulta da CNI realizada em 2019 com 583 empresas, federações ou associações setoriais indica que quase metade (43,3%) dos estudos são rejeitados após análise do órgão ambiental.

Além de estudos ambientais incompletos ou ruins, que são de responsabilidade dos empreendedores, há problemas de atrasos decorrentes de normas antiquadas e da falta de pessoal em órgãos ambientais.

O quadro de servidores do Ibama dedicados exclusivamente ao licenciamento, por exemplo, caiu de 369 em 2016 para 238 em 2018, em razão de aposentadorias e outros tipos de desligamento. Houve, porém, aumento do número de empreendimentos licenciados no mesmo período. Com isso, o número médio de processos por analista quase dobrou, passando de 6,17 em 2016 para 11,7 em 2018. Havia 2.792 processos de licenciamento ativos no Ibama em 2018.

No entanto, a grande maioria dos casos é realizada pelos Estados e municípios, que têm estrutura inferior à necessária. A consulta da CNI aponta que pelo menos 90% dos licenciamentos ocorrem em Estados ou municípios.

“Você quer que a licença continue custando até 27% de empreendimento e leve até 10 anos para ser expedida? A falta de licenciamento eficiente prejudica não só a sociedade, como o meio ambiente e a economia.”

FALSO

Repetida por parlamentares da bancada ruralista, a conta de 27% é mencionada em texto de 2017 que não inclui a fonte dos dados, assinado por um advogado e um engenheiro que coordena o Instituto Pensar Agropecuária, ligado à Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA).

Há poucos estudos sobre custos do licenciamento ambiental para todos os tipos de obra, mas uma consulta feita em 2019 pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) com 583 representantes do setor industrial em todo o país aponta que 67% dos entrevistados afirmaram gastar até 5% do valor da obra com o processo de licenciamento ambiental.

O custo de um empreendimento pode variar conforme sua tipologia e suas características. Empreendimentos que causam mais impactos negativos, por exemplo, resultam em custos maiores para mitigá-los. Os estudos mais detalhados realizados no país abordam principalmente usinas hidrelétricas, que estão entre os empreendimentos mais caros e com maior número de condicionantes socioambientais.

A própria usina de Belo Monte, citada pela FPA como exemplo de ônus ambiental excessivo, teve um custo de R$ 6 bilhões em medidas socioambientais, segundo a própria bancada ruralista. Até 2017, porém, a obra havia consumido um total de R$ 38 bilhões em recursos públicos e privados – ou seja, a parte ambiental representou 15% do valor total da obra, quase metade dos 27% alegados pelos ruralistas.

Relatório do Banco Mundial encomendado pelo governo brasileiro em 2008 mostra que os gastos socioambientais representaram em média 12% do custo total de 34 usinas analisadas, construídas entre as décadas de 1990 e 2000. De acordo com o estudo, questões sociais como remanejamento populacional, apoio às comunidades e infraestrutura representaram a maior parte dos custos socioambientais (quase 80%), enquanto questões relacionadas ao meio ambiente apenas 2% dos custos totais.

Outro estudo, divulgado em 2017 pelo Instituto Acende Brasil, que tem como clientes principalmente empresas do setor elétrico, estimou valor médio semelhante para os gastos socioambientais de 56 hidrelétricas: 10,7% em relação ao custo total dos empreendimentos. Os dados foram obtidos a partir de estudos de viabilidade de usinas disponibilizados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e abrangem o período de 1990 a 2014.

Já nota técnica publicada em 2018 pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), órgão vinculado ao Ministério de Minas e Energia, identificou média de 20% para custos fundiários e ações socioambientais ao analisar 16 empreendimentos hidrelétricos de 2007 a 2015. Esses custos compreendem a aquisição de terrenos, que representou em média 8% do total, relocações de infraestruturas (3%) e programas socioambientais (9%). Custos fundiários, porém, não são necessariamente relacionados ao licenciamento ambiental. A desapropriação de terras, por exemplo, terá que ocorrer de qualquer forma para um empreendimento funcionar.

O estudo da EPE também estimou o custo médio de ações socioambientais em relação ao custo médio total para geração solar, eólica, térmica e Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs). As taxas foram de 1%, 3%, 2% e 10%, respectivamente, percentuais estimados com base nos custos dos empreendimentos habilitados para participação nos leilões de 2015 e 2016. São, portanto, preliminares, de uma fase de planejamento. Para calcular os custos socioambientais a EPE considerou aquisição de terrenos e ações socioambientais.

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