Pequeno manual prático do negacionismo: Bolsonaro e a seleção de evidências

Publicado originalmente em Fakebook.eco. Para acessar, clique aqui.

Convite de presidente a embaixadores para sobrevoar trecho preservado da Amazônia é exemplo (tosco) de falácia conhecida como “cherry-picking”

Rota Manaus Boa-Vista deve grande parte de sua preservação à terra indígena Waimiri-Atroari

Em discurso na cerimônia de formatura de novos diplomatas brasileiros na última quinta-feira (22/10), o presidente Jair Bolsonaro afirmou que está organizando uma viagem de Manaus (AM) a Boa Vista (RR) com diplomatas de outros países para mostrar “a verdade” sobre a Amazônia.

“Estamos ultimando uma viagem Manaus-Boa Vista, onde convidaremos diplomatas de outros países para mostrar, naquela curta viagem de 1h30, que (eles) não verão em nossa floresta amazônica nada queimando ou sequer um hectare de selva devastada”, discursou.

Bolsonaro aplica, nesta situação, algo que se conhece como cherry-picking (seleção ou supressão de evidências), muito usada para espalhar desinformação. É um tipo de falácia em que se divulga apenas informações favoráveis à tese defendida, ocultando outros dados que fazem parte daquela realidade. O resultado é um cenário muito diferente no contexto mais amplo.

A tradução literal do termo em inglês, “colheita de cerejas”, ilustra bem. Quando um colhedor vai a campo, seleciona propositalmente apenas as frutas mais maduras e saudáveis. Quem vê apenas essa amostra tende a deduzir que toda a safra, ou grande parte dela, está madura e saudável. No entanto, nem sempre essa parte pode ser considerada representativa, ou seja, não é necessariamente um retrato da situação real daquela safra, que pode conter uma grande quantidade de frutas podres e apenas algumas saudáveis.

Voltando à frase de Bolsonaro, Amazonas e Roraima concentram grande parte das florestas preservadas no bioma. Dos 802,9 mil km2 desmatados até hoje nos nove Estados da Amazônia Legal, Amazonas e Roraima representam 5,2% e 1,4% do total, respectivamente, segundo dados do Inpe.

No entanto, o ritmo de destruição está aumentando: os dois Estados perderam, juntos, 2 mil km2 ou 200.000 hectares em 2019. Houve aumento de 202% do desmatamento em Roraima e de 37% no Amazonas em relação ao ano anterior, segundo o Inpe. A taxa para toda a Amazônia foi relativamente menor, de 34%.

No caso das queimadas, o Amazonas enfrenta a pior temporada de incêndios já registrada desde 1998, início do monitoramento feito pelo Inpe, com 16 mil focos de janeiro a 22 de outubro. O recorde anterior era de 2005, com 14,2 mil focos. No Estado de Roraima houve queda em relação ao mesmo período de 2019, mas o número de focos (1.812) é relativamente baixo.

No bioma, os dados até 22 de outubro mostram aumento de 26% em relação ao mesmo período de 2019 – o acumulado até agora (89,6 mil focos) já supera todo o ano passado (89,1 mil).

A rota selecionada por Bolsonaro para mostrar a “verdade” sobre o desmatamento na Amazônia deve sua preservação, em boa parte do trecho, à terra indígena Waimiri-Atroari, homologada em 1994. Alvo de massacre durante a construção da rodovia BR-174 pela ditadura militar, a etnia enfrenta agora a ameaça do governo Bolsonaro de construir uma linha de alta tensão que ligaria Manaus a Boa vista, cortando o território, sem autorização dos índios.

Se o avião presidencial sobrevoar a BR-174, é possível que a fumaça atrapalhe o passeio. O mapa abaixo mostra que o desmatamento  acompanha o traçado da estrada e só é interrompido por terras indígenas e unidades de conservação – categorias de uso da terra que o presidente acha que o Brasil tem demais.

Desmatamento acumulado (amarelo) entre Manaue e Boa Vista, em imagem do Prodes-Inpe

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