Pecuária: demanda global por soja impulsiona destruição do Pantanal

Publicado originalmente em ANDA News. Para acessar, clique aqui.

A demanda global por soja viu a produção anual da safra no Brasil subir de 30 milhões de toneladas em 2000 para 125 milhões de toneladas hoje. A maior parte dos agroquímicos consumidos no Brasil é utilizada neste plantio.

A cultura da soja também responde pela maior parte dos agroquímicos usados no Brasil e a atividade agrícola concentrada no estado de Mato Grosso agora está vendo esses produtos químicos serem levados rio abaixo até o Pantanal.

A maior planície de inundação do planeta, o Pantanal é relativamente intocado pela agricultura, com apenas 0,01% de sua área ocupada por fazendas de soja.

Cientistas demonstraram que os cursos de água que alimentam o Pantanal estão contaminados e assoreados, e que os peixes estão tornando-se escassos em alguns locais.

Foto: Marcos Vergueiro/Secom-MT

O anzol que Lourenço Pereira Leite lança no rio Paraguai atrai cada vez menos pintados, cacharas e pacus com o passar dos dias. Essas espécies nativas de peixes sustentaram sua família por muitas gerações, mas nenhuma das habilidades que aprendeu pescando no Pantanal com seu pai e avô o ajudou a evitar as embalagens vazias de agrotóxicos que aparecem em suas armadilhas em vez de peixes. “Isso deve vir da nascente, porque não há grandes fazendas por aqui”, diz ele.

Sua observação resume a encruzilhada em que se encontra este bioma brasileiro: apenas 0,01% do vasto Pantanal selvagem foi transformado em fazendas de soja, no entanto, a área úmida tornou-se um enorme depósito para os resíduos de agroquímicos que desce de terras agrícolas para o norte, nas altas planícies do estado de Mato Grosso. A crescente demanda internacional por soja fez com que as fazendas invadissem áreas preservadas e empurrou os campos de soja para mais perto das nascentes que alimentam o Pantanal.

No ano passado, o bioma passou por um incêndio histórico que atingiu 30% da região e chamou muita atenção da imprensa internacional – assim como fizeram os incêndios de 2019 na Amazônia – com foco na inércia do governo federal em proteger seu patrimônio natural. Mas, na realidade, a região está sofrendo em silêncio há muito mais tempo. Poluentes viajam rio abaixo, ameaçando uma das poucas regiões naturais do Brasil ainda bem preservada da atividade humana.

Lourenço Leite pesca no município de Cáceres, no sudoeste de Mato Grosso, porta de entrada para o bioma reconhecido pela UNESCO como Patrimônio Mundial. A água que rege a vida do Pantanal passa pelo local onde ele lança sua vara. As chuvas que caem ao norte, na planície mato-grossense, fazem subir as nascentes dos rios Paraguai, Sepotuba e Cabaçal. Essa abundância de água desce para Cáceres, de onde forma a maior planície de inundação do planeta, habitada por espécies raras e ameaçadas de extinção, como onças, tamanduás-bandeira e tatus gigantes.

Em condições naturais, essa água carregaria apenas a matéria orgânica que serve de alimento para os peixes e fertilizante para as plantas. Mas hoje também traz consigo os produtos químicos que vazam das fazendas de soja. Nos últimos 30 anos, a produção de soja do Brasil aumentou seis vezes, de 20 milhões de toneladas métricas por ano para 125 milhões de toneladas hoje, a maioria das quais é cultivada em Mato Grosso. O estado é o maior produtor de soja do Brasil, que por sua vez é o maior fornecedor mundial do grão.

“O Planalto Mato-Grossense faz parte do Planalto Central”, diz Débora Calheiros, bióloga da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) do Ministério da Agricultura. A região é considerada o reservatório de água do Brasil porque abriga as nascentes das principais bacias hidrológicas do Brasil. Além da Bacia do Alto Paraguai que forma o Pantanal, outras quatro grandes bacias têm origem aqui: a Amazônia, a São Francisco, a Paraná e a Araguaia/Tocantins, diz Calheiros, que também trabalha no Ministério Público Federal e tem dedicado sua trajetória na compreensão do impacto do uso de agroquímicos no ecossistema da região.

“O Pantanal é uma espécie de cavidade”, diz Nilza da Silva, pescadora de Cáceres. “Nós estamos aqui e eles plantam soja em cima. Quando as chuvas vêm, para onde flui a água? Descendo a ladeira até aqui.”

“O centro de Cáceres fica na margem do rio”, acrescenta Nilza. “Era um pesqueiro muito fundo onde podíamos até pegar jaú” – o bagre dourado, uma das maiores espécies de peixes nativos do Brasil, que pode atingir comprimentos de 1,5 metro (5 pés). “Hoje em dia, na estação seca, você pode cruzar o rio com água abaixo dos joelhos por causa de todo o lodo. E quase não há peixes”, diz Nilza.

Um grupo de pesquisadores que monitoram o bem-estar do Pantanal concluiu que o assoreamento que ela descreve é o resultado de um aumento de 200% dos depósitos de sedimentos no Pantanal nas últimas três décadas, número em paralelo ao crescimento da agricultura em altitudes mais elevadas.

A planície de inundação do Pantanal foi quase totalmente preservada do agronegócio. Apenas 16% de sua área é dedicada à atividade agrícola, principalmente à pecuária. É um quadro diferente do planalto, onde 60% das terras foram ocupadas pelo agronegócio e onde estão localizados os maiores municípios produtores de soja do Brasil, também líderes nacionais no uso de agrotóxicos. As planícies também abrigam as nascentes dos rios que alimentam o Pantanal.

A soja não é nativa do Brasil e hoje é cultivada em fazendas de monocultura que requerem grandes volumes de inseticidas e herbicidas para manter as pragas afastadas. Por isso, embora represente 42% da área plantada no Brasil, a soja responde por mais de 60% do uso de agroquímicos no país – um coquetel de mais de 450 fórmulas químicas diferentes, a maioria considerada tóxica para o homem ou prejudicial à natureza, de acordo com a Agência Nacional de Saúde e o Ministério do Meio Ambiente.

Os olhos do mundo no Brasil

Das 125 milhões de toneladas de soja que o Brasil produziu em 2019-2020, apenas um terço ficou no país. A maior parte da produção é exportada para se tornar ração para gado, aves e suínos, que por sua vez são abatidos para alimentar a crescente população do planeta.

A China é o maior cliente de soja do Brasil. As exportações também atingem toda a Europa, com volumes particularmente elevados na Holanda, Espanha e França.

A Noruega, principal doador do Fundo Amazônia que visa proteger a floresta tropical contra o ataque de ameaças como a agricultura, atualmente importa 328.000 toneladas de soja inteira por ano, pelo menos 70% dos quais vêm do planalto de Mato Grosso. Também importa outras 278.000 toneladas na forma de proteína de soja, para usar em suas fazendas de salmão, de acordo com a Statistics Norway.

É uma pequena parcela da produção total do Brasil (cerca de 0,5%), mas representa 86,3% de toda a soja importada por um país que continua pressionando o Brasil a cuidar do meio ambiente por meio do Fundo Amazônia.

A Noruega também pressionou importadores e empresas a adotarem um método de certificação rigoroso para a soja brasileira que entra no país, incluindo uma lista de pesticidas proibidos. Ele exige que a origem do produto seja rastreada para evitar qualquer associação com o desmatamento e garantir que os grãos não venham de plantações geneticamente modificadas. Mas do ponto de vista social e ambiental, a soja convencional não difere muito da soja transgênica, pois ambas são cultivadas em extensas monoculturas com uso de agrotóxicos. A única exceção é o uso do herbicida glifosato, que, dependendo da forma como é aplicado, pode matar plantas de soja convencionais. Por esse motivo, o uso dele se torna menos frequente.

Segundo a plataforma da Trase, seis municípios são os principais fornecedores de soja integral para a Noruega: Sapezal, Diamantino, Nova Ubiratã, Campo Novo do Parecis, Campos de Júlio e Tangará da Serra. Essas cidades – que também exportam para China, Holanda, Turquia, Tailândia, Reino Unido, Arábia Saudita, México e Cuba – estão todas localizadas no planalto de Mato Grosso, região de grande importância ambiental.

Um rio envenenado na nascente

A duzentos quilômetros, cerca de 120 milhas, ao norte de onde Lourenço Leite vai pescar, é um local onde a água escorre do solo em pequenas nascentes cristalinas que formam sete lagos. Esta é a nascente do rio Paraguai. A partir daqui a água flui por 2.600 km (1.600 mi), passando pela Bolívia e pelo Paraguai, antes de se derramar no mar da Argentina junto com o rio Paraná.

Ao longo do caminho, formam-se as curvas sinuosas que compõem as vistas panorâmicas muitas vezes associadas ao Pantanal brasileiro. No entanto, dos sete lagos originais, apenas três ainda retêm água, e um deles está perigosamente baixo. “Estão desaparecendo por causa da falta de vegetação e da quantidade de soja e pecuária nas proximidades”, diz Jacildo de Siqueira Pinho, biólogo da Secretaria Estadual de Saúde. “Quem sobrevoa a região vê apenas monocultura. Eles removeram quase toda a vegetação ao redor dos lagos.”

O Código Florestal do Brasil torna obrigatório conservar as matas ciliares ao redor das fontes de água. Isso significa que na nascente do rio Paraguai, uma área maior do que a capital da Noruega, Oslo, está ostensivamente sob proteção. Conhecida como Área de Proteção Ambiental da Nascente do Rio Paraguai (APA), abrange 77.743 hectares (192.107 acres) e abrange os municípios de Alto Paraguai e Diamantino. Este último é um dos seis principais exportadores de soja para a Noruega.

Todas as atividades que agridem o meio ambiente são proibidas pela EPA, principalmente aquelas que ameaçam os mananciais, e o uso indiscriminado de agroquímicos não é tolerado. Apesar disso, 40% da vegetação nativa dentro da EPA foi desmatada para fazendas de soja e milho e pastagem de gado.

Entre os poderosos proprietários de terras da EPA estão o grupo pecuarista argentino Telhar e Golmar Mendes, um juiz do Supremo Tribunal Federal que já foi comparado por um colega a um chefe do crime organizado. O Ministério Público do Estado de Mato Grosso não conseguiu processar com sucesso nenhum dos agentes agrícolas da região.

Promotores instauraram 19 ações cíveis contra diversas partes em provas que incluíam um estudo da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) mostrando vestígios de pelo menos 10 agroquímicos em amostras de água, sedimento de rio e até solo de dentro da APA da nascente do rio Paraguai. Mas não venceram em nenhuma das ações, nem conseguiram chegar a um acordo com os proprietários das fazendas para reduzir a quantidade e a toxidade dos agroquímicos que utilizam em suas lavouras. Em vez disso, foi o procurador da comarca de Diamantino, Daniel Zappia, que acabou sendo alvo de um processo administrativo do CNMP, a mando de um dos fazendeiros investigados: o ministro Mendes.

“Já provamos que os agroquímicos usados ​​nas cabeceiras chegam aos rios Pantanal e que todos os estuários do bioma estão contaminados”, diz o biólogo Calheiros, líder do estudo da UFMT que encontrou vestígios de agroquímicos na unidade de conservação.

Uma das toxinas encontradas pelos pesquisadores da UFMT é a atrazina, herbicida proibido na União Europeia desde 2004 e que nos anos 1990 levou ao fechamento dos sistemas de abastecimento de água na Itália após a identificação de altas concentrações do produto.

A atrazina em humanos causa irritações na pele, olhos e sistema respiratório. Esses mesmos sintomas vêm aumentando entre os moradores de Cáceres ao longo do baixo rio Paraguai, segundo Claudia de Pinho, coordenadora da Rede Cáceres de Comunidades Tradicionais do Pantanal. “Algumas comunidades reclamam muito de doenças de pele. Isso piorou ainda mais após a queimada de 2020”, diz ela. Na EPA da Fonte do Rio Paraguai, os incêndios florestais de 2020 afetaram 70% da área protegida.

“O desmatamento que ocorre em altitudes mais elevadas envia sedimentos rio abaixo para a planície de sedimentos, que é o Pantanal”, diz Solange Ikeda, uma das fundadoras do Instituto Gaia, uma ONG de Cáceres que trabalha pela proteção do Pantanal. “Isso reduziu o nível da água e, aqui, alguns centímetros a menos de água já impacta a biodiversidade, que é controlada pelo pulso de inundação.”

No entanto, a Secretaria do Meio Ambiente do Estado de Mato Grosso (SEMA) minimizou as conclusões do relatório da UFMT, afirmando que “não demonstrou que os limites legalmente estabelecidos foram ultrapassados” e que “a legislação não inclui limites para muitos dos [produtos químicos] listados no relatório.” Na verdade, o limite aceitável do Brasil para os níveis de glifosato na água é 5.000 vezes maior do que na Noruega e na União Europeia.

Impacto no fundo da bacia

O modo de vida dos moradores do Pantanal mudou com a qualidade da água: já se foram os dias em que uma pessoa podia saciar a sede simplesmente se inclinando na lateral de sua canoa. “Não podemos mais beber do rio porque nos dá diarreia e vômito. Hoje em dia, quando vou pescar, tenho que levar uma garrafa de água mineral”, diz Lourenço Leite, o pescador de Cáceres. Mas, uma vez que, os sintomas que ele descreve surgem tão comumente tanto em casos de envenenamento agudo por pesticida quanto de infecção por parasitas e bactérias que podem ser encontrados na água, é difícil atribuir a culpa.

Mas foi demonstrado que os agroquímicos fluem das planícies altas para a bacia inferior. Um estudo de 2014 verificou a presença de sete dessas substâncias na Bacia do Rio Cuiabá, que também abastece o Pantanal. Segundo os autores, “atos realizados na alta bacia podem impactar diretamente o Pantanal”. As evidências chamaram a atenção de cientistas do exterior, e agora uma equipe de pesquisadores do Brasil, Argentina e Reino Unido está trabalhando no assunto. Eles ainda não divulgaram suas descobertas.

Um estudo de 2008, liderado por Débora Calheiros e três outros pesquisadores, mostrou a presença de quatro agrotóxicos, alguns deles usados ​​em fazendas de soja, em amostras de água do Pantanal. Como o cultivo da soja ainda é uma atividade nova no bioma, isso reforça a hipótese de contaminação da bacia hidrológica.

O agronegócio está avançando nas fronteiras do Pantanal em um ritmo lento, mas constante. Em 1985, a atividade agropecuária ocupava cerca de 4% do bioma. Hoje, esse número é de 16%, principalmente a pecuária. A soja é responsável por 0,01% do uso da terra no Pantanal. Contudo a pressão para abrir novas terras para a agricultura aumentou significativamente na última década, pois a demanda excede a capacidade das fazendas existentes, embora a produtividade tenha aumentado desde os anos 1980.

“A soja começou a surgir no Pantanal há dez anos”, diz Clovis Vailant, do Instituto Gaia. “As fazendas já ocupam toda a planície da fronteira com o Paraguai e a Bolívia, onde se espalha de oeste para leste. O Pantanal está bem no caminho desse crescimento, é a última barreira.”

A agricultura já chegou a Cáceres e a Poconé, a cerca de 180 km de distância. “Já estávamos sentindo o impacto da agricultura na bacia alta e agora existem plantações de soja no Pantanal”, diz Claudia de Pinho, da Rede Cáceres. “Isso nos deixa ainda mais preocupados com a contaminação, porque ela está acontecendo ainda mais perto das comunidades tradicionais. Temos comunidades em Poconé que estão tendo dificuldade em manter suas hortas vivas. Os vegetais morrem porque o vento traz pesticidas das áreas circundantes e os impacta diretamente.”

De acordo com as projeções dos cientistas, se o crescimento das fazendas continuar neste ritmo, o agronegócio terá substituído a vegetação nativa em uma área de 1,4 milhão de hectares (3,5 milhões de acre) da Bacia do Alto Paraguai até 2050, e a quantidade de pesticidas usados na região aumentará em 4,3 milhões de litros (1,1 milhão de galões) por ano – o equivalente a duas piscinas olímpicas cheias de agroquímicos tóxicos. O efeito de tudo isso em altitudes mais elevadas não será grande: representaria um aumento de 7% em relação ao volume de agroquímicos usados ​​hoje. Mas nas planícies do Pantanal, onde hoje há pouco uso de agrotóxicos, o aumento pode chegar a 50%.

Resíduos também chegam à Amazônia

Dos seis municípios brasileiros que mais exportam soja integral para a Noruega, quatro estão entre os maiores usuários de agroquímicos do Brasil. Isso está de acordo com dados de 2015 de um estudo de Wanderley Pignati, pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso que se tornou a autoridade brasileira em agroquímicos. Há evidências de defeitos de nascença em crianças, mostra o trabalho de Pignati. Ele também observa que as taxas de câncer em crianças da região são superiores à média nacional e as hospitalizações por intoxicações graves são frequentes.

Outros três estudos de 2016 e 2017 mostram que a contaminação por agrotóxicos atingiu municípios que ficam na bacia do rio Juruena, que deságua no Tapajós, afluente do rio mais poderoso de todos: o Amazonas.

Nos municípios de Sapezal, Campo Novo do Parecis e Nova Ubiratã, os moradores estão consumindo água, peixes, frutas e verduras comprovadamente contaminados por toxinas das fazendas. Nem mesmo os poços artesianos que abastecem as escolas são seguros.

Como a complexa hidrografia da Amazônia é bastante extensa, o efeito das toxinas se dilui e é difícil provar que atinge a floresta. Mas a bióloga Débora Calheiros afirma que a contaminação é real.

“Por ser crônica, a contaminação se espalha. O ingrediente ativo se decompõe após entrar no sistema de água, mas os compostos resultantes dessa decomposição são às vezes mais tóxicos do que o ingrediente ativo. Quem mais sofre são as pessoas que dependem dessa água e dos peixes”, afirma.

Muita soja, mas comida insuficiente

Além de comprometer a qualidade da água de dois biomas fundamentalmente brasileiros, o sistema de produção de commodities em larga escala também representa uma ameaça à segurança alimentar das populações locais.

Um estudo de 2019 mostrou que os moradores dos municípios de Campo Novo do Parecis, Sapezal e Campos de Júlio obtêm seus alimentos em outros estados porque é quase impossível cultivar alimentos em uma região onde 98% das terras são dedicadas ao cultivo de culturas comerciais como soja e milho.

Não há espaço suficiente para cultivar frutas e vegetais, ou para criar galinhas, porcos ou vacas leiteiras. Quem tenta produzir alimentos nesses municípios sofre com a deriva de agroquímicos, fenômeno do vento que leva as toxinas para propriedades vizinhas.

De acordo com um estudo realizado em 2019, quase metade das fazendas nesses municípios tem mais de 1.000 hectares (2.500 acres) e é mantida por apenas alguns proprietários, então o impacto de pulverizar as monoculturas com agroquímicos é grande. “As nuvens de veneno não chegam apenas ao seu alvo (plantas e pragas), mas atingem também os trabalhadores da fazenda e, indiretamente, o ar, o solo e a água, as pessoas que ali vivem, os animais e outras plantas do entorno”.

Este se tornou um dos desafios do dia a dia para os pequenos agricultores agrupados sob a CEIBA, a Associação de Agricultores Familiares do Assentamento Caeté, em Diamantino – um dos principais municípios usuários de pesticidas no Brasil e um importante fornecedor de soja para a Noruega.

O CEIBA é formado por cerca de 15 famílias que buscam produzir alimentos com pouco ou nenhum agroquímico. Suas fazendas são próximas aos campos de soja, o que exige um esforço extra para proteger os pomares e as hortas dos assentamentos. “Plantamos árvores ao longo das propriedades e do lado que tem soja plantamos mandioca”, diz o agricultor Ruseveth Marques Martins. Eles escolheram a mandioca porque suas folhas se erguem a mais de um metro (3 pés) do solo, formando uma barreira natural contra a deriva; a parte comestível da planta cresce no subsolo, protegida da contaminação do ar.

A deriva compromete a saúde de alunos de escolas próximas às fazendas de soja e mesmo de residentes em áreas urbanas desses municípios. A bióloga Lucimara Beserra identificou resíduos de agrotóxicos na água usada em quatro escolas de Campos de Júlio, Sapezal e Campo Novo do Parecis. “Quem mora aqui está acostumado a ver os aviões jogando veneno”, diz Mauro Flávio de Souza, professor de uma escola da zona rural de Campos de Júlio. “Você pode sentir o cheiro no ar. Se uma pessoa tem algum tipo de alergia a agroquímicos, ela tem que sair da cidade”.

Pesquisa é tabu na terra dos agroquímicos

Em 2017, o consumo brasileiro de agrotóxicos foi três vezes maior que a média mundial. Então, só em 2020, o governo do presidente Jair Bolsonaro aprovou o uso de outros 493 agrotóxicos – uma média de quase 10 por semana. Um relatório publicado este ano pelo Parlamento Europeu alerta que um terço dessas substâncias contém ingredientes ativos proibidos ou restritos para uso dentro da UE.

Mas os cientistas brasileiros não podem se mover tão rápido quanto os aviões que lançam os agroquímicos nos campos. “Precisamos de uma rede de laboratórios credenciados, validados e certificados no Brasil para estudar os resíduos de agroquímicos na água, na chuva, na terra, no ar, no sangue, na urina e no leite materno, assim como fazemos na alimentação”, afirma Wanderley Pignati, da Universidade Federal de Mato Grosso.

Foi apenas em 2015 que Mato Grosso, estado que mais utiliza agrotóxicos no Brasil, inaugurou seu primeiro laboratório para identificar resíduos de glifosato, o herbicida utilizado na cultura da soja e que é o mais vendido no Brasil.

Graças a uma parceria com o Ministério Público do Trabalho, o laboratório da universidade federal conseguiu adquirir novos equipamentos. Ainda está em fase de teste para uso devido aos atrasos relacionados à pandemia.

Enquanto isso, a universidade conseguiu identificar a presença de 15 princípios ativos, uma fração dos 504 princípios ativos aprovados para uso no Brasil, segundo estudo da pesquisadora Larissa Bombardi.

Por enquanto, a logística de testar qualquer amostra da região para a presença de agrotóxicos significa que ela deve ser enviada à Fiocruz, instituto de pesquisas em saúde pública do Rio de Janeiro, ou percorrer mais de 2.000 quilômetros até Santa Maria Federal Universidade do Rio Grande do Sul. Mesmo assim, ambas as instituições têm capacidade limitada de detecção de glifosato, por exemplo.

O atual mal-estar econômico complica ainda mais as coisas. Os fundos estaduais e federais foram cortados em 80% nos últimos anos, enquanto as bolsas de pesquisa e pós-graduação foram cortadas pela metade. “Nossas instituições parceiras, como o Ministério Público, estão direcionando todos os seus recursos para o combate à pandemia”, diz Pignati.

Os obstáculos não são apenas técnicos e econômicos. Especialistas que pesquisam os efeitos do uso de agrotóxicos no Brasil podem receber ameaças de morte e até serem obrigados a deixar o país. Foi o que aconteceu com Larissa Bombardi, autora de um dos estudos mais completos já produzidos sobre o tema.

Em carta aberta que enviou aos colegas da Universidade de São Paulo no dia 3 de março de 2021, Bombardi revelou que havia sido intimidada após a publicação de seu trabalho.

“Em junho de 2019, recebi recomendações de lideranças de movimentos sociais para que eu fizesse diversos rumos e variasse minha agenda para que minha rotina ficasse mais difícil de rastrear e para que eu ficasse mais protegida de possíveis ataques dos setores econômicos envolvidos no tema ao qual dediquei meu trabalho”, escreveu ela.

Para a Bombardi, a gota d’água foi em agosto de 2020, quando agressores invadiram sua casa. Eles a trancaram no banheiro e levaram seu computador, onde ela salvou todos os seus dados de pesquisa. “[Um] parente perguntou-me se a agressão pode ter tido a ver com o meu trabalho. Todos sabiam que eu não salvo meus arquivos na nuvem. Honestamente, essa hipótese nem passou pela minha cabeça no dia do ataque. E eu realmente não tenho ideia se isso estava relacionado ao meu trabalho. É possível que não. Mas nunca saberei”, disse Bombardi antes de deixar o Brasil para morar na Europa.

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