Pandemia e ensino remoto emergencial acentuam tendência à circulação digital de conteúdos bibliográficos

Publicado originalmente em Jornal da Universidade por Guilherme Freling. Para acessar, clique aqui.

Conhecimento | Disponibilização e compartilhamento de arquivos digitais tensionam o debate sobre os limites entre direitos autorais e acesso à informação, enquanto a Biblioteca Central vê um crescimento nos acessos ao acervo de e-books

*Foto: Flávio Dutra/JU

Um tema recorrente nas piadas sobre o ensino superior, antes da pandemia, era o gasto com cópias que as leituras obrigatórias das disciplinas demandavam. As casas de xerox onde ficam as famosas “pastas do professor” retinham parte considerável do orçamento médio dos estudantes. As contingências da quarentena e do Ensino Remoto Emergencial (ERE), no entanto, driblaram essa necessidade e impuseram um aumento da circulação de livros, capítulos e artigos em formato digital – legal ou ilegalmente.

Transições nos meios de circulação e compartilhamento de conteúdo não são novidades. A octogenária UFRGS já pôde ver em seus ambientes, por exemplo, cópias mimeografadas. Após a década de 1960, houve a introdução dos sistemas de fotocópia, vulgo ‘xerox’, e a adoção das “pastas do professor”. Hoje o império do digital é que está fortalecido.

A professora da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (FABICO) Maria Berenice Machado é uma testemunha dessa transição. Formada na década de 1980 em Publicidade pela UFRGS, ela ainda não conseguiu se desfazer da xeroteca (biblioteca de xerox) acumulada nos tempos de estudante, tempo em que o cobertor dos pilas era curto demais para permitir a compra dos livros.

Maria conta que o ERE foi um desafio, principalmente a adaptação dos planos de ensino à resolução que regulamentou o ensino remoto.

“As orientações que vieram eram de que nós só poderíamos colocar no Plano de Ensino materiais disponibilizados digitalmente, porque as bibliotecas estavam fechadas e as pastas de cópias sem acesso aos alunos”

Maria Berenice Machado

Nesse caso, parte de seu trabalho foi procurar arquivos digitais, PDFs, artigos de revistas eletrônicas, links e materiais já digitalizados.

Um dos arquivos digitalizados que Maria já possuía era o trecho de um livro de Max Weber, disponível apenas na biblioteca da Psicologia e com poucos exemplares. “A gente trouxe o livro, digitalizou e deixou uma cópia na pasta. Quando a gente digitalizou, também ficamos com aquele arquivo, que poderíamos mandar para os alunos”, relembra.

A Resolução n.º 25 de 27 de julho de 2020, que regulamenta o ERE, exige que a bibliografia dos planos de ensino esteja “acessível digitalmente nos repositórios da Universidade, naqueles aos quais a Universidade provê acesso, em outro repositório de domínio público, ou ser disponibilizada pelo docente, observada a legislação referente a direitos autorais”.

A professora, que ministra as disciplinas de Redação, Propaganda Política e Seminário Tópicos Avançados e Especiais em Publicidade, diz que encontrou novos conteúdos para suas cadeiras durante a pandemia, mas que o ERE limita a experiência de aprendizado. “Sinto por alguns clássicos da biblioteca [física] que os alunos que quiserem não poderão acessar neste momento.”

A corrida pelo e-book

O caso de Maria definitivamente não tem nada de anedótico. Segundo dados fornecidos pela Biblioteca Central, o pico de acesso semanal à coleção Minha Biblioteca da UFRGS, no primeiro semestre do ERE, superou dez mil; no ano de 2019 não passava de 2.000. Já no segundo semestre (2020/2), a coleção teve uma média consistente acima de 10.000 acessos semanais. O gráfico impressiona.

Procura pela coleção de e-Books da coleção Minha Biblioteca da UFRGS aumenta durante Ensino Remoto (Imagem: Biblioteca Central/Divulgação)

Leticia Strehl, diretora da Biblioteca Central da Universidade, considera esse crescimento “extraordinário” e afirma que o catálogo se manteve o mesmo durante a pandemia. Em sua visão, a UFRGS estava numa “situação bastante privilegiada” no que diz respeito a investimentos em acervo digital.

“A gente tinha 10 anos de investimento em e-books e uns meses antes [desse cenário] nós adaptamos nosso catálogo, fazendo um desenvolvimento em tecnologia, para que não se considerassem somente nossos acervos físicos, mas também os digitais”

Leticia Strehl

No contexto de acesso à informação tão facilitado pela Internet, Leticia considera que as bibliotecas deixam de lado o papel de simplesmente prover acesso e assumem a função de “auxiliar na formação cidadã dos usuários a ter um uso crítico e ético em relação à informação”.

Caminhos alternativos

Por outro lado, a internet e o universo digital desafiam a correção ética dos usuários por ser uma zona franca para downloads gratuitos de livros e arquivos protegidos por direitos autorais. Além dos sites mais famosos como o Library Genesis, o Zip-Library e o SciHub – este especializado em conteúdo científico –, o aplicativo Telegram também passou a ser protagonista entre as redes de disseminação de conteúdos sem o devido licenciamento dos direitos de propriedade.

Em uma pesquisa rápida no Google ou no próprio aplicativo – que tem um funcionamento semelhante ao WhatsApp, mas com a possibilidade de criação de canais públicos e sem limite de participantes –, abundam grupos para compartilhamento de arquivos pirateados. Há grupos especializados em conteúdo de medicina, literatura nacional, literatura estrangeira, em outros idiomas, lançamentos e até de direito. Todos eles com dezenas e até centenas de milhares de participantes.

Há algum tempo, a quase inexistência de regulação do aplicativo tem preocupado autoridades e pesquisadores no Brasil e no mundo por favorecer a circulação de conteúdos danosos, como fake news, sem uma maneira viável de regulação. Segundo a pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box, 35% dos smartphones brasileiros tinham o aplicativo instalado há um ano; hoje são 53%.

De acordo com site oficial da empresa responsável pelo Telegram – um dos poucos caminhos para obtenção de informações, já que ela não tem escritório no Brasil –, o aplicativo “é um mensageiro baseado em nuvem com sincronização contínua”. Tal característica permite aos seus usuários “compartilhar um número ilimitado de fotos, vídeos e arquivos (doc, zip, mp3, etc.) de até 2 GB cada”, diz o texto. Para se ter uma noção, o tamanho médio de um e-book é de 200 a 250 Mb, quase 80 vezes menor que o limite.

A pirataria de fato prejudica as editoras, reconhece a diretora da Biblioteca Central da UFRGS, mas a questão central, segundo ela, está na dificuldade de acesso aos conteúdos. “Ela de uma certa forma é uma reação a um modelo de negócio muito predatório das empresas. E aí, quem é o vilão?”, questiona. Na sua visão, “a indústria tem que ter um comprometimento com algo que a gente considera básico que é que o conhecimento é um bem público comum”.

“Se o mercado editorial não começar a desenvolver modelos de negócio acessíveis, em lugar de irem à biblioteca buscar o impresso, as pessoas vão, sim, buscar a versão pirata na Internet”

Leticia Strehl
Reproduzindo conhecimento

O direito autoral e a sustentação econômica do mercado livreiro não parecem preocupar o Telegram. A empresa também faz questão de ressaltar que “todos os chats e chats em grupo são privados entre os participantes. Nós não processamos nenhum pedido relacionado a eles”.

Kelly Bruch, professora do Departamento do Direito Econômico e do Trabalho na UFRGS e especialista em direito autoral, afirma que os principais obstáculos para a penalização do aplicativo estão na ausência de uma sede no país e na incerteza sobre a responsabilidade dos meios em relação aos conteúdos. “Esse é um problema muito sério e que o próprio Telegram poderia usar [para se defender], que é uma discussão jurídica sobre se aquele que fornece o meio seria responsável pelo conteúdo que circula por ele ou não.”

Essas indeterminações jurídicas deixam os autores que tiveram seus direitos violados em uma situação de desabrigo. O único caminho para um eventual ressarcimento seria o acionamento do indivíduo que disponibilizou, o que é quase impossível no Telegram, uma vez que a maioria dos grupos destinados ao compartilhamento de conteúdos mantém seus integrantes e usuários anônimos.

Kelly esclarece que o direito autoral é “um monopólio que o Estado concede àquele que cria uma obra, para que ele tenha o direito exclusivo de explorar aquela obra”. Portanto, é o titular do direito, o autor, que deve protegê-lo.

No entanto, esse direito não é absoluto, e a própria lei define alguns limites. Além disso, o entendimento entre acadêmicos e operadores do Direito vem consolidando algumas interpretações para as exceções à lei. Segundo a docente, a reprodução com fins didáticos e que não cause prejuízo econômico ao autor da obra, por exemplo, é permitida.

“Existe o que a gente chama de trade-off [balanço] entre o direito fundamental do autor e o direito fundamental do acesso à informação e do acesso à cultura”

Kelly Bruch

Isso significa que, nas instituições de ensino, principalmente públicas, o entendimento sobre os limites legais do direito autoral pode ser alargado, pois são ambientes de compartilhamento e divulgação de conhecimento.

Durante o ensino remoto, Kelly auxiliou a Secretaria de Educação a Distância (SEAD) na elaboração de uma cartilha sobre boas práticas relacionadas a direitos autorais para o Ensino Remoto Emergencial. O texto explica que todas as regras que se aplicavam ao ensino presencial também valem para o remoto. A “pasta do professor” é um exemplo. Dentro do equilíbrio entre o direito do autor e o direito à informação e à cultura, é permitido o compartilhamento de pequenos trechos de obras para a cópia. “Deixar um livro inteiro [na pasta do professor] não é recomendável, porque você estaria nessa situação tirando um ganho econômico do autor”, pondera Kelly.

Uma situação semelhante é a de obras raras, aquelas em cuja reedição o autor ou a editora não têm mais interesse, como o caso do livro de Max Weber disponibilizado por Maria Berenice aos alunos. Para Kelly, considerando a necessidade pedagógica e a escassez de exemplares, a jurisprudência autorizaria a reprodução – e “também pelo viés do direito à cultura e à informação”, conclui.

Solução para ações acadêmicas provocadas pelo ensino remoto (ERE), a circulação de arquivos digitais aumentou durante a pandemia; na imagem acima, pastas com materiais físicos para atividades de aula, organizadas por docentes e postas à disposição em lojas nos arredores da universidade (Fotos: Flávio Dutra/JU)

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