Não se enfrenta inflação de oferta com alta de juros

Publicado originalmente em Jornal da Universidade. Para acessar, clique aqui.

Artigo | Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS, Flávio Benevett Fligenspan aponta a limitação do sistema de metas de inflação quando desassociada da demanda elevada e sugere aperfeiçoamentos.

Desde 1999, com a derrocada da chamada “âncora cambial”, em que o dólar barato funcionava como a grande referência de preços e controle da inflação, o Brasil adotou o sistema de metas de inflação. Ele é relativamente simples, pois o centro do modelo exige que o Banco Central faça o acompanhamento rigoroso da inflação para verificar se sua projeção para o final do ano é superior ou inferior a uma meta predefinida e, assim, altere a taxa de juros para cima ou para baixo. Se, no caso mais usual e mais grave, a projeção anual da inflação estiver acima da meta, o Banco Central eleva os juros para conter a demanda das famílias por consumo e das empresas por investimentos.

Observe que o mecanismo simples embute um diagnóstico de que a causa da inflação é uma demanda elevada, ou seja, uma economia que está aquecida e que precisa ser contida. Aqui começam os problemas, pois nem sempre a inflação é de demanda. Muitas vezes, como na situação presente do Brasil, a inflação é de oferta ou de custos. Foram os custos que cresceram muito nos últimos meses por diversos motivos, internacionais e domésticos, e não a demanda. Seria um contrassenso falarmos em economia aquecida e inflação de demanda quando o desemprego está elevado, a renda dos trabalhadores em queda e o PIB atual é inferior ao do início de 2014 – antes da penúltima recessão. É claro que a economia brasileira não está aquecida, mas o sistema, obviamente limitado, manda aumentar os juros para conter a atividade. A consequência de tal medida é que corremos o risco de uma estagflação, fenômeno que combina estagnação com inflação.

Assim, vamos conseguir desestimular a atividade, já suficientemente fraca e, simultaneamente, manter a inflação, já que o remédio adotado – a alta dos juros – não mexerá com as causas atuais da elevação de preços no Brasil.

A inflação brasileira, medida pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Ampliado, do IBGE), índice utilizado pelo sistema de metas, chegou a 11,3%, quando medida para os últimos 12 meses terminados em março, ou seja, o período de abril de 2021 a março de 2022. É uma taxa muito alta para o padrão do sistema e muito acima da meta estabelecida para este ano, de 3,5%. Estima-se que ela deva baixar ao longo do ano e chegar em dezembro próxima a 7% na medida acumulada em 12 meses, ainda elevada.

Além da taxa em si, há outras notícias ruins, como o índice de difusão, que mede como a inflação está “espalhada” pela economia, verificando quantos itens do índice aumentaram seus preços. E o que se verifica é uma grande difusão, isto é, a inflação não está restrita a áreas específicas da economia nacional, logo está mais difícil controlá-la.

Ocorre que, mesmo disseminada e elevada, a inflação brasileira atual não é causada por uma atividade em alta, mas, sim, por aumentos de custos determinados tanto pela economia internacional como por problemas internos. No que se refere aos internacionais, a pandemia já havia trazido pressões, como o aumento de preços de várias commodities – minerais, energéticas (combustíveis) e agropecuárias –, cenário agora agravado com a invasão da Ucrânia. Outro fenômeno que surgiu com a pandemia foi a escassez de semicondutores para a produção industrial, especialmente diante da mudança da demanda mundial de serviços para produtos industriais em função da necessidade de distanciamento social. Estudar e trabalhar em casa exigiu ajustes, algumas reformas e compra de novos e mais potentes equipamentos, estimulando alguns setores específicos de bens duráveis. Houve também uma crise no sistema de transporte marítimo e a consequente elevação de custos. Todos esses elementos ajudaram a aumentar a inflação no mundo, com repercussões inevitáveis nos custos de produção no Brasil.

Assim, parte da inflação corrente no país é importada, sendo gerada por forças sobre as quais não temos controle.  

Para tornar o cenário ainda mais difícil, existem fatores domésticos também importantes. A crise hídrica elevou os preços da energia elétrica, e grandes variações climáticas no sul e no centro do país causaram quebras de safras. Uma taxa de juros baixa para o padrão brasileiro em 2020 e no início de 2021 e a desorganização política e institucional do Governo também compuseram o quadro, pois houve muita saída de dólares em 2021, elevando a taxa de câmbio e tornando mais caras as importações, especialmente as de matérias-primas industriais.

Observe-se que nessa lista de fatores que explicam a inflação atual, praticamente não estão presentes itens ligados à demanda, a não ser o deslocamento da demanda de serviços para bens de consumo, algo que aconteceu no mundo inteiro. Claro que a redução da demanda por serviços no Brasil tem uma contrapartida positiva que é a baixa inflação deste setor; ela tem sido bem menor que a variação do IPCA desde a metade de 2020; logo, tem ajudado a diminuir o IPCA.

Se o sistema de metas de inflação lida de forma errada com aumentos de preços a partir de problemas de oferta e se não há nenhuma indicação de que vamos trocá-lo por outro sistema, pelo menos valeria a pena discutir alguns aperfeiçoamentos, o que também não tem sido feito.

Dois aperfeiçoamentos possíveis seriam o uso dos núcleos de inflação, e não o IPCA “cheio”, como medida de inflação; e a alteração do período de verificação do cumprimento da meta para além do ano-calendário.

Imagino que, em parte, a ausência desse debate se deva ao temor de que esses aperfeiçoamentos possam parecer tentativas de manipulação da equipe econômica. Nossa tradição de maltrato das questões políticas e econômicas pesa aqui para evitar melhorias.

Por fim, vale repetir que o sistema de metas de inflação é limitado e não oferece boas soluções especialmente nos casos de inflação de oferta. Para controlar a inflação, o melhor seria o crescimento econômico em combinação com os aumentos da concorrência e da produtividade. Com isso, teríamos mais bens e serviços disponíveis a custos mais baixos. Mas a economia brasileira está longe dessa combinação.

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