“Não houve enfrentamento à pandemia, mas uma espécie de gerenciamento de danos” | Maria Tarcisa Silva Bega

Publicado originalmente em Ciência UFPR por Rodrigo Choinski. Para acessar, clique aqui.

grupo Grupo de Pesquisa e Extensão em Políticas Sociais e Desenvolvimento Urbano (PDUR), ligado ao Programa de Pós-graduação de Sociologia da UFPR, vem investigando as medidas tomadas pelo poder público para conter a pandemia causada pela nova variedade de coronavírus que atingiu o Brasil, principalmente, a partir de março de 2020. O objetivo foi analisar o impacto da doença na produção de desigualdades que afetam a Região Metropolitana de Curitiba (RMC). O grupo propôs a pesquisa a partir da participação no Observatório das Metrópoles, que tem avaliado as políticas sociais nas grandes cidades brasileiras com enfoque nas desigualdades sociais.

Professora Maria Tarcisa Silva Bega, coordenadora do projeto: Pesquisa e Extensão em Políticas Sociais e Desenvolvimento Urbano (PDUR) durante lançamento de seu livro “Letras e Política no Paraná” Foto: Ana Assunção

Na entrevista, conversamos com a professora Maria Tarcisa Silva Bega, coordenadora do grupo, que foi iniciado em 2005, e registrado em 2010 no CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Ela explica que a iniciativa estuda as ações governamentais e suas consequências em relação a uma série de políticas que podem ser mais ou menos delimitadas pelo tema dos direitos sociais, como definidos na Constituição, abrangendo as áreas da seguridade, previdência e serviço social, além da saúde e educação, com enfoque em públicos mais vulneráveis.

O grupo lançou em dezembro seu primeiro relatório, abrangendo o ano de 2020, e, recentemente, um novo relatório com mais informações, em março deste ano. As principais conclusões do estudo é que não houve um enfrentamento real à pandemia, com o poder público realizando apenas uma espécie de gerenciamento de danos, tanto nos municípios da RMC como no governos do Paraná e Federal.

Quais foram os principais objetivos da pesquisa?

O objetivo geral deste projeto é analisar os efeitos da pandemia na produção de desigualdades sociais na Região Metropolitana de Curitiba e encaminhar ações efetivas para minimização de danos aos grupos socialmente vulneráveis. Tem como objetivos específicos, primeiro acompanhar em tempo real os boletins epidemiológicos gerados pelas prefeituras municipais e pelo governo do Paraná e, segundo, incorporar sobre essas bases, já referenciadas, informações dos indicadores socioeconômicos educacionais e sanitários. Como terceiro objetivo analisar o efeito-território buscando criar mapas de desigualdades sociais para a RMC. Como grupo que estuda políticas públicas também monitoramos, em nível municipal, as produções legislativas e normativas sobre a pandemia, destacando as cidades onde há maior incidência de casos, além de sugerir ações alternativas de enfrentamento a pandemia nas periferias e favelas para grupos sociais mais vulneráveis. Como objetivo a ser desenvolvido mais ao final do projeto, buscamos assessorar com cursos de capacitação os agentes públicos e lideranças comunitárias.
Bom, desses objetivos nós não conseguimos trabalhar até agora o último objetivo que é assessorar com cursos de capacitação, mas isso está no escopo do nosso trabalho para 2021.

Como o estudo foi feito e qual foi a dinâmica geral da doença na RMC?

O Sul do Brasil, o Paraná e Curitiba tiveram tempo para adotar medidas restritivas que já haviam dado certo, por exemplo em Fortaleza e São Luís no Maranhão, mas isso não ocorreu.Maria Tarcisa Silva Bega, professora do Departamento de Sociologia da UFPR

Nós focamos, basicamente, em entender a produção dos dados, consistir e analisar o que foi produzido e articular essa análise dos números, que são de base epidemiológica, a uma leitura sociológica, avaliando o impacto da doença no território. O que nós vimos é o que está no relatório. É uma doença que começa entre os ricos, então ela impacta em primeiro lugar os bairros centrais das maiores cidades e, no caso da região metropolitana, ela teve uma disseminação tardia. Afinal, Curitiba não é um polo nacional, não é sede de grandes aeroportos, aqui o fluxo de pessoas é menor, se comparado ao Rio de Janeiro, a São Paulo, a Fortaleza e a Manaus, que têm os grandes aeroportos de fluxo internacional de pessoas. Mesmo que tardiamente ela chegou aqui. Nossa questão não era se ela ia chegar, mas quando e com que intensidade, então nós temos trabalhado nisso.

O Sul do Brasil, o Paraná e Curitiba tiveram tempo para adotar medidas restritivas que já haviam dado certo, por exemplo em Fortaleza e São Luís no Maranhão, mas isso não ocorreu. Poderíamos ter assumido uma atitude mais proativa, principalmente pelo governo estadual, mas isso só vai acontecer no primeiro pico da doença, em junho/julho. Não houve mecanismos efetivos de apoio aos mais pobres, aos trabalhadores informais, aos microempresários e às empresas mais atingidas pelo distanciamento social. O foco aqui foi criar estruturas – absolutamente necessárias, é bom dizer – para gerenciar a doença e não para impedir sua disseminação.

O relatório indica que a doença atingiu a população de diferentes formas, com alguns grupos sofrendo um maior impacto, especialmente nas periferias, como foi essa dinâmica?

A doença, grosso modo, entra primeiro nos grupos mais ricos, pessoas que circulam em aeroportos internacionais. Isso é um padrão brasileiro e na Região Metropolitana de Curitiba também. Ela começou nos bairros mais ricos como mostrou estudos feitos, por exemplo, pela Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz] e pela [Universidade] Federal de Minas Gerais. Em um documento que está para ser publicado na Revista Brasileira de Sociologia em que analisamos o comportamento da pandemia em São Paulo, Fortaleza e Manaus, tomando como referência os meses de março a agosto de 2020, mostramos que a doença chega primeiro nos bairros com alto IDHM [Índice de Desenvolvimento humano Municipal] (acima de 0,850) e atinge depois as pessoas que vêm trabalhar nessas casas, que muitas vezes são contaminadas pelos seus patrões, no transporte coletivo e levam a doença para as periferias. Nessa hora atinge toda a rede de serviços, empregadas domésticas, porteiros, diaristas, entregadores e todo o pessoal que trabalha em pequenos comércios, em panificadoras, supermercados etc. Assim a doença se espalha para os bairros periféricos. Pela baixa testagem, não é possível saber de forma precisa quando a doença chegou, até porque parte dessa população pode ser assintomática e transmitir para sua família. Ao se identificar um doente, não se sabe quantas pessoas foram contaminadas ali. Além disso, quando pega em uma pessoa com uma comorbidade ou em um imunodeprimido, o que pode acontecer é essa pessoa em dois, três, quatro dias vir a óbito sem que haja tempo de ela ser testada e a doença identificada. Então, nós imaginamos que a contaminação nas periferias é no mínimo de 30 a 40% maior do que aparece, bem como a mortalidade.

Nós imaginamos que a contaminação nas periferias é no mínimo de 30 a 40% maior do que aparece, bem como a mortalidade.Maria Tarcisa Silva Bega, professora do Departamento de Sociologia da UFPR

E por que nós falamos também na mortalidade? Porque quando nós trabalhamos com essas mortes de covid-19, nós temos as SARs, que são todas essas síndromes virais de base respiratória e nos dados divulgados pelas secretarias, pelos boletins epidemiológicos do próprio Ministério da Saúde, nós tivemos um aumento de oitocentos por cento dessas mortes em relação a 2019. Dessas mortes, mais ou menos a metade não tem causa específica, então nós julgamos hoje, que boa parte das pessoas que morrem de Síndrome Respiratória Aguda Grave não especificada são casos de covid-19 não testados, mas isso é uma hipótese que nós precisamos mais tempo para analisar. Precisamos de mais pesquisas, mas é uma hipótese que é consistente, só ainda não tempo para uma demonstração efetiva.

Uma das conclusões do relatório é que não houve um enfrentamento à pandemia mas uma espécie de gerenciamento de danos, como vocês chegaram a essa conclusão?

Sim, uma das principais conclusões do estudo é que não houve enfrentamento à pandemia, mas sim uma espécie de gerenciamento de danos. Como nós chegamos a essa conclusão? Nós analisamos os dados, vimos como a doença estava se espalhando e quais ações públicas foram tomadas ao longo do tempo. A ciência nos ensina que o único jeito que temos para minimizar, barrar ou controlar efetivamente uma doença altamente infecciosa, que se espalha pelas gotículas de saliva, pela conversa e o contato entre as pessoas, toque em lugares que essas gotículas recém caíram, é por meio distanciamento ampliado e bastante rígido. Num primeiro momento, no mês de março, foi feito esse distanciamento aqui na região metropolitana, ele foi bastante alto, isso fez com que a disseminação fosse mais lenta, mas a pressão econômica e a pressão da vida mesmo, de um país com uma grande desigualdade social, obrigou as pessoas a saírem para trabalhar. Então os trabalhadores formais e os informais tiveram que sair, pegar ônibus. Não houve um controle rígido do distanciamento social nos ônibus; a frota foi diminuída e não aumentada como seria necessário, apesar dos subsídios que a prefeitura de Curitiba deu a este segmento econômico. Segundo dados do IPEA de 2014, a integração entre Curitiba e os municípios do primeiro anel tem como resultante o deslocamento pendular de mais de 600 mil pessoas. Em início de 2020 com certeza este número era bem maior.

O mecanismo de controle de vários indicadores epidemiológicos, sociais e econômicos, denominado sistema de bandeiras, foi implantada aqui só a partir de junho e foi eficiente num primeiro momento, em especial no primeiro pico da doença. A primeira definição de bandeira laranja produziu resultados concretos a partir de agosto até outubro. Quando o ritmo da doença arrefeceu, era necessário não a liberação, mas o fechamento, para forçar a queda da curva de contágio e mortes e, principalmente para dar um fôlego às equipes de saúde, naquele momento já exaustas.

A não opção por medidas mais restritivas, e nem penso aqui em lockdown como feito em alguns países, poderiam ter evitado o colapso do sistema de saúde, já anunciado desde o início de novembro.

lockdown teria um custo econômico e um custo social, isso exigiria uma política muito grande de assistência social para os grupos mais vulneráveis, que demorou no caso do Brasil, vindo com o auxílio emergencial, que foi fundamental para que a doença não se disseminasse mais ainda e nem se gerasse uma multidão de pedintes ou população em situação de rua.
O que faltou foi uma medida de distanciamento social efetiva com toda higienização, com etiqueta sanitária, uso de máscaras e tudo mais que é necessária. E aqui estou pensando apenas em nível municipal.

Os municípios estiveram submetidos ainda às orientações erráticas dos executivos estadual e federal. No caso da União, houve uma politização perversa da pandemia, com narrativas conflitantes entre a Presidência da República e o Ministério da Saúde. O executivo estadual optou por seguir as (des)orientações do Governo Federal, imputando ao cidadão toda a responsabilidade sobre sua contaminação.

Uma das principais conclusões do estudo é que não houve enfrentamento à pandemia, mas sim uma espécie de gerenciamento de danosMaria Tarcisa Silva Bega, professora do Departamento de Sociologia da UFPR

O Brasil teve dois meses para se adaptar à pandemia, mas não se adaptou, então nós enfrentamos hospitais sem EPIs [Equipamentos de Proteção Individual], equipe de profissionais sem condições de trabalho, uma doença nova que não tem protocolo de tratamento já definido. Enfim, uma doença que foi enfrentada muito na tentativa e erro.

Fica claro, a partir do grande pico de julho e agosto que o Estado brasileiro, também o estadual e os poderes locais, ao invés de forçarem um distanciamento maior, garantindo condições para que as pessoas sobrevivessem, optaram por gerenciar a pandemia.

Poderia falar sobre esse gerenciamento e quais suas consequências?

O que é gerenciar a pandemia? É fazer o abre e fecha, abrindo mais do que fechando, e criar leitos hospitalares, só que tem um limite, né, o SUS por mais potente que seja e tenha essa estrutura capilarizada, que atende todas as áreas do Brasil, tem limites de Recursos Humanos especializados para esse atendimento. Então hoje nós temos as equipes do SUS exauridas, os hospitais exauridos. A população também cansou do distanciamento, não houve uma ação efetiva do Governo Federal no sentido do distanciamento, não há penalização de fato para aqueles que burlam as recomendações, porque não é uma legislação, é apenas uma recomendação para o distanciamento. Então nós operamos esse abre e fecha, o aumento do número de leitos e contratação de pessoal, é isso que nós chamamos de gerenciamento. Não é um enfrentamento, a gente vai gerenciando, aumenta aqui e põe mais equipamento, diminui, desabilita os leitos. É essa a política do Brasil e nós chegamos agora no final de fevereiro praticamente com 250 mil mortos. E é importante destacar, o Brasil tem 2,7% da população mundial e em novembro bateu 10% dos casos mundiais e 12% dos óbitos. Então é um gerenciamento, eu diria, mal feito, porque efetivamente nós temos muito mortos, nós só perdemos para os Estados Unidos, que não é vantagem nenhuma, somos o segundo ou terceiro país em número de casos.

A testagem era um dos instrumentos principais para acompanhar a doença, o baixo número de testes foi uma das principais falhas identificadas? Poderia falar um pouco sobre isso?

A testagem foi um problema sério, primeiro que todos os países tiveram falta de testes, o Brasil ainda demorou para comprar no mercado internacional, só comprou em abril. Esses testes tiveram problemas de logística muito sérios para a distribuição pelo Ministério da Saúde. Então nós compramos os testes RT-PCR, que são os testes efetivos, mas sua distribuição foi péssima, num jogo de gato e rato entre o governo federal e os estados., o que levou a uma baixa distribuição. Nós tivemos ainda o escândalo dos testes vencidos (nos últimos meses de 2020), em que, segundo os dados do próprio Ministério da Saúde, que estão disponíveis no Transparência Brasil, 70% dos testes não foram distribuídos e estão para perder a validade. Com a falta de teste, eles não foram feitos maciçamente, foram feitos apenas para as pessoas que procuravam o posto de saúde com os sintomas. O que acontece? O padrão aceito de alta testagem indica que até 5% dos mesmos devem ser positivos. No Brasil oscilou ao longo de 2020 entre 20 e 50%. Quanto maior o percentual de resultados positivos, menor o volume de teste disponível, ou seja, só pessoas com sintomas foram testados e não toda a sua rede de contatos, como em países que fizeram uma política efetiva de controle da doença. om sintomas. O Brasil deveria ter testado ao menos cinco vezes mais pessoas para que pudéssemos levar a sério os resultados. Além disso há um conjunto de testes não considerados com alto padrão de segurança usados concomitante ao RT-PCR. Todos os testes deste tipo vinham sendo somados nos boletins epidemiológicos até pouco tempo atrás. Não houve uma política de chamamento para testagem, por exemplo, para testar os grupos de risco ou para testar as pessoas que estão em maior circulação, como lixeiros, motoristas de Uber, motoristas de ônibus, trabalhadores que têm que pegar transporte coletivo. Então esse foi o problema dos testes.

Na falta de uma política de Estado, culparam-se primeiro os idosos por não ficar em casa, depois os jovens por frequentarem baladas. Esta é nossa principal crítica: não dá para imputar o cidadão a responsabilidade enquanto o presidente, empresários, grandes formadores de opinião fazem festas e fazem aglomeração.Maria Tarcisa Silva Bega, professora do Departamento de Sociologia da UFPR

Quais as principais ações que deixaram de ser tomadas ou foram insuficientes pelas prefeituras da Região Metropolitana de Curitiba e no âmbito estadual?

Eu diria que necessitaria de políticas uniformes entre os municípios, isso só começou a ser feito a partir de final de junho e começo de julho, quando nós já estávamos no pico da pandemia. Então nós perdemos um tempo muito grande para definir e implementar medidas de diminuição de circulação das pessoas, que seria a mais efetiva, combinada com financiamento e políticas de apoio aos grupos vulneráveis. Porque, uma diarista tem que sair para buscar dinheiro, botar comida em casa, agora se ela tiver outra opção, se tivessem ampliado mecanismos como o auxílio emergencial essas pessoas poderiam não ter saído. De fato, quem fez o distanciamento social foi quem pode fazer home office, basicamente os servidores públicos, professores e empresas que tiveram condições de colocar seus trabalhadores em trabalho remoto, no setor mais administrativo, mas as fábricas continuaram, comércio continuou, supermercado continuou. Serviço essencial tem que continuar, você nunca tira totalmente a circulação das pessoas. Parar as escolas foi um elemento fundamental para evitar a disseminação da doença. Então são políticas no sentido de diminuir a circulação de pessoas e aumentar a estrutura de atendimento; impedir a disseminação de fake news, punindo com firmeza e rapidez seus propagadores, deixar o receituário médico aos médicos e não para qualquer um, principalmente pessoas com poder de decisão, como é o caso do “tratamento precoce”, que está comprovado cientificamente que não funciona.

O que vimos foi a falta de uma política unificada, foi cada um por si, e, portanto, uma cobrança ao cidadão, com sua culpabilização. Na falta de uma política de Estado, culparam-se primeiro os idosos por não ficar em casa, depois os jovens por frequentarem baladas. Esta é nossa principal crítica: não dá para imputar o cidadão a responsabilidade enquanto o presidente, empresários, grandes formadores de opinião fazem festas e fazem aglomeração. Que sinalização dão à população? Que a doença é uma gripezinha, mas não é uma gripezinha porque uma gripezinha não mata 250 mil pessoas em um ano.

O relatório demonstra que o Governo Federal tomou atitudes que atrapalharam as medidas de combate à pandemia, poderia nos explicar quais foram essas ações e seus impactos?

Vou listar algumas, entre tantas outras, das atitudes que atrapalharam o combate mais efetivo da pandemia:
1 – Negação da ciência e do conhecimento especializado, levando à não criação de um comitê nacional de Especialistas com poder não apenas consultivo mas deliberativo sobre a política de enfrentamento à pandemia; 2 – A politização da questão, que se consolida com o troca-troca no Ministério da Saúde e a longa interinidade de um general no cargo (só nomeado em agosto) e sem poder de deliberação; 3 – O reiterado discurso negacionista do presidente da República, que teimou em governar para seus eleitores ao invés de governar para os brasileiros. 4 – O abandono de uma política de saúde unificada, com clara definição das funções federais, estaduais e municipais. 5 – A atitude de subserviência aos interesses do mercado em detrimento da saúde das pessoas. 6 – A demora – exatamente pelo conflito de narrativas no plano federal – em adquirir equipamentos, EPIs, montagem de hospitais de campanha e, mais tarde na negociação de vacinas; 7 – A leitura equivocada por parte do Presidente da república, da posição do STF que permitiu que estados e municípios pudessem, juntamente com o governo federal, definir políticas em níveis infra-nacionais.

Além dos impactos da própria doença, as medidas necessárias para isolamento tiveram impactos para além da esfera da saúde, especialmente o acesso a renda, como estes temas foram tratados nas esferas públicas?

É uma doença que deve ser enfrentada em muitas frentes: na saúde. na assistência social; no crédito para pequenos e médios negócios; no apoio, sem burocracia, aos trabalhadores informais; na infraestrutura urbana por meio da democratização do acesso à água; na garantia de moradia digna em especial à população em situação de rua.Maria Tarcisa Silva Bega, professora do Departamento de Sociologia da UFPR

Houve uma letargia dos governantes no enfrentamento dos impactos econômicos. Já se conhecia, em março e abril, as ações de governos europeus no sentido em garantir mínimos sociais que permitissem o lockdown. O Brasil perdeu meses preciosos que poderiam ter permitido um outro arranjo institucional para o enfrentamento da pandemia. Em fevereiro já se sabia que era uma epidemia, talvez de escala global.

Na primeira quinzena de março a OMS [Organização Mundial da Saúde] declarou a pandemia. “Preparem-se, detectem, protejam, tratem, reduzam o ciclo de transmissão, inovem e aprendam”, recomendou o diretor da OMS, Tedros Adhanom. É uma doença que deve ser enfrentada em muitas frentes: na saúde. na assistência social; no crédito para pequenos e médios negócios; no apoio, sem burocracia, aos trabalhadores informais; na infraestrutura urbana por meio da democratização do acesso à água; na garantia de moradia digna em especial à população em situação de rua.

Faltou uma campanha séria que investisse na solidariedade intergeracional (jovens auxiliando idosos no isolamento social) e tem sido residual as ações de grupos empresariais em movimentos pontuais de auxílio às comunidades vulneráveis (favelas, indígenas, quilombolas e populações ribeirinhas), não se caracterizando em movimentos de solidariedade efetiva entre classes sociais.  Sobrou discursos, narrativas conflitantes, sobrou pressões de grupos econômicos e faltou Estado. Nenhuma crise mundial é enfrentada com a omissão do Estado.

Muitos têm destacado o papel da imprensa na pandemia, qual a opinião da professora sobre a cobertura feita, sobre os temas levantados na pesquisa?

De maneira geral considero positiva a cobertura dos grandes veículos de comunicação, bem como dos sites de grande alcance. Mas a qualidade do que é veiculado varia conforme os interesses empresariais e político-partidários aos quais estão submetidos. Eu diria que, grosso modo, a imprensa foi o grande agente de veiculação de informações para a população, nesse sentido eu diria que ela cumpriu o seu papel, embora alguns organismos de imprensa tenham feito desserviço no sentido de disseminar fake news . Eu acho que isso deve ser categorizado como crime, deveria haver punição, porque é inadmissível um veículo de comunicação, que é uma concessão estatal, ficar divulgando tratamentos, leituras equivocadas das informações, colocando em dúvida a ação dos organismos de saúde, duvidando do número de mortos, destacando o número de recuperados, mas se omitindo de informações como por exemplo as complicações de saúde dos “recuperados”. Por exemplo, pouco se fala das mortes de ex-entubados, das sequelas renais, pulmonares, cardiológicas e neurológicas, além dos impactos emocionais em sobreviventes.

O que eu destaco de positivo é a divulgação de ações de como fazer a higienização, a campanha do uso da máscara, explicando como deve ser feito o distanciamento social e, principalmente, a divulgação dos números. O consórcio de imprensa foi o grande mecanismo de divulgação desses números, inclusive no enfrentamento à falta de informação e a falta de transparência do Governo Federal.

Poderia falar sobre o estudo de políticas públicas para que o público leigo possa entender como são feitas as pesquisas na área?

O estudo de políticas públicas na sociologia busca analisar como acontecem as ações do Estado em atendimento ao conjunto de necessidades e interesses da sociedade e do mercado. No nosso caso, trabalhamos com as políticas, demandas e interesses sociais, a partir do preconizado no capítulo dos direitos sociais da Constituição Brasileira e abordamos as temáticas da grande área da Seguridade Social que é Previdência Social, Assistência Social e Saúde, além de Educação, as quais compõem o núcleo duro das políticas públicas de caráter social. Mas como demandas e interesses da sociedade não se restringem a estes pontos, também analisamos as questões da infraestrutura urbana (habitação, saneamento, transporte e mobilidade urbana), o acesso ao meio ambiente saudável, ao lazer, à alimentação de qualidade e as ações públicas voltadas aos grupos mais vulneráveis. Nossas pesquisas operam na transversalidade com as discussões de raça, de gênero e de geração.

Além disso, nós discutimos as derivações da ação do estado, na questão da participação política e do lugar dos movimentos sociais na construção das políticas públicas. Usando um conceito clássico, a política pública é o estado em ação. Toda ação pública, ou seja, ação do estado, feita diretamente ou indiretamente, por provisão, delegação, regulação ou por transferência de dinheiro é objeto do estudo de políticas públicas.

No nosso caso, fazemos o recorte do social. Não trabalhamos com políticas de caráter financeiro, política fiscal, tributária ou política econômica, porque não é o perfil do grupo. Esses estudos geralmente são feitos por outros grupos de políticas públicas, como, por exemplo no Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas do departamento de Economia. Eles têm um estudo muito forte na área financeira, na área fiscal-tributária e econômica. Nós não entramos nisso, embora saibamos que as políticas públicas são hiperconectadas entre si: a definição de uma política tributária vai impactar com maior ou menor volume de recursos para execução de uma política pública de caráter social, por exemplo.

Gostaria, para finalizar, que nos falasse sobre o histórico desse estudo, para que possamos entender como ele surgiu.

Bom, o ano de 2020 começou tranquilo para nós, estávamos trabalhando com uma pesquisa grande de política pública em caráter comparado. Nós analisávamos, por exemplo, políticas realizadas pelo poder local, em nível municipal, comparando municípios ou comparando estados ou em alguns casos comparando os países. Também, com um segmento que trabalha a questão das políticas de juventude, mais especificamente a política de educação. Seguíamos nosso roteiro normal com discussões semanais dos projetos de pesquisa dos professores e pós-graduandos, das metodologias utilizadas nas pesquisas. Trabalhamos com a parte de formação acadêmica do grupo, que são leituras de textos recentes, textos fundamentais na área de política pública.

Em 2020 começou a pandemia. Foi primeiro um momento de susto: o que nós vamos fazer? Como programa de pós-graduação em Sociologia fomos instados pela PRPPG [Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação da UFPR] para produzir uma proposta coletiva para pesquisas que visassem o enfrentamento da pandemia. Então, o programa inteiro se debruçou sobre o tema e produzimos uma ementa encaminhada à PRPPG e, a partir desta reflexão começamos a pensar como cada grupo de pesquisa poderia responder aos desafios impostos pela pandemia.

No mês de maio a universidade lançou o edital Proind [Projetos Individuais no Combate à Covid-19] que financiava projetos voltados a questão da pandemia em todas as áreas. Nosso grupo de pesquisa apresentou a proposta de monitoramento dos impactos da disseminação, abrangência da doença e da sua letalidade, a partir da construção de indicadores de acompanhamento.

Nós recebemos semanalmente e até diariamente as notícias, os informes, os boletins epidemiológicos e nos debruçamos sobre isso, analisando a sua construção, os critérios utilizados, a sua consistência. Como nós somos vinculados ao núcleo de Curitiba do Observatório das Metrópoles, que é um projeto Nacional, nós assumimos a responsabilidade de produzir para o observatório uma parte da discussão do Núcleo de Curitiba, que abrange a Região Metropolitana de Curitiba, composta pelos mesmos 29 municípios da Segunda Regional de Saúde da Secretaria Estadual de Saúde do Paraná.

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