Linguagem Não Binária desestabiliza as normas e propõe uma maneira mais inclusiva de comunicação

Publicado originalmente em Jornal da Universidade por Ana Ortega. Para acessar, clique aqui.

Sociedade | Também conhecida como Linguagem Neutra de Gênero, seu uso procura tirar do automático o binarismo da língua e promover espaço de maior visibilidade, representação e respeito à identidade de cada pessoa 

*Foto de capa: Flávio Dutra/JU

Quando você conhece alguém novo, mas não sabe sua identidade de gênero, você para e pensa como vai se referir a essa pessoa? Você costuma dizer ‘ô moço’, ‘ô guria’, ‘ô guri’ para quem não conhece? Ou então apontar ‘aquela mulher ali’, ‘aquele homem ali’ sem saber quem são de fato? E você já parou para pensar que pode, no automatismo do cotidiano, estar violando algo que deveria ser básico: o direito de cada pessoa dizer quem é e como se identifica?

Se você estiver prestando atenção nas redes sociais nos últimos tempos, deve ter percebido que cada vez mais pessoas estão sinalizando, junto ao espaço da “bio” de seus perfis, os pronomes pelos quais preferem ser tratadas. “Ela/dela”, “Ele/dele”, “Elu/delu”, “Ile/dile” são algumas dessas possibilidades. Com “ela” e “ele” você, provavelmente, está familiarizado desde que nasceu. Já “Elu/delu” e “Ile/dile” são pronomes considerados “neutros” e integram sistemas da chamada linguagem não binária – também conhecida como linguagem neutra.

A linguagem não binária – que parte do pressuposto de que o masculino da língua portuguesa, tido como genérico, é, na verdade, um marcador excludente e que a língua, ao representar suas gentes, falha ao não trazer sua diversidade – encontra a internet como um terreno fértil, sendo, por enquanto, o espaço social em que é mais utilizada. 

No estudo da língua e na vivência em sociedade, os gêneros feminino e masculino costumam ser os únicos sobre os quais aprendemos. Acontece que grupos, em sua maioria pertencentes às comunidades LGBTQIAP+, mostram que há outras existências possíveis para além do binário homem e mulher, feminino e masculino. 

A não binaridade é uma forma de identificar pessoas que não se sentem contempladas por essa estrutura que fixa os limites de pertencimento a um (e apenas um) gênero. O termo ‘não binário’ é guarda-chuva e pode compreender pessoas trans, pessoas de gênero fluido, pessoas intersexo, pessoas agênero ou simplesmente qualquer pessoa que não se sinta contemplada pelo binarismo. 

E o que isso tem a ver com linguagem? Tudo. Afinal, utilizamos da linguagem para estar no mundo, para transformar-nos em sujeitos. A língua faz parte do processo humano de subjetivação, de comunicação, de autoexpressão. “O social e o linguístico podem e devem dialogar”, afirma Nai Monteiro, mestranda no Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal Rural de Pernambuco (PROGEL/UFRPE). “Se a gente parar e pensar, a língua nos agencia. Nós não podemos existir fora da língua. Toda questão de identidade, de gênero, de sexualidade necessariamente perpassa a linguagem.” Nai, que se identifica como uma pessoa não binária que prefere ser tratada no feminino, realiza estudos sobre questões relacionadas às expressões Queer e LGBTQIAP+. 

A pesquisadora lembra que já existem várias sistematizações da linguagem não binária, mas que não há uma forma única ou “correta” de neutralizar. Pelo contrário, o movimento tem em sua intenção a desestabilização da norma e não a imposição de outras. A pluralidade de sistematizações indica as muitas possibilidades de incorporar o movimento na linguagem.

Um dos sistemas mais utilizados é o “ELU/DELU”. Nele, o “a” e “o” no final dos pronomes é substituído por “u”. Em lugar de dizer “ele” ou “ela”, diz-se “elu”. Para “dele” ou “dela”, utilize-se “delu”. Já em palavras terminadas em “a” ou “o”, troca-se pelo “e”, como em “linde”, “tranquile”, “namorade”. Em palavras em que o “e” sinaliza o masculino, utiliza-se o “ie”, como em “professories”. Esse é apenas um dos sistemas possíveis. Outros, como o “ILE/DILE”, também são comumente utilizados. Alguns manuais podem ser encontrados na internet, como o de Ophelia Cassiano, ativista trans, e o de Gioni Caê Almeida, estudante de Letras da Unioeste.

O movimento pela neutralização da linguagem está longe de acontecer apenas em território brasileiro. Em Portugal, na Suécia, na Argentina, nos Estados Unidos e no Canadá, por exemplo, existem movimentos que datam de décadas em direção à institucionalização e legitimação da linguagem em seus territórios. No Brasil, escuta-se muito a pergunta: ‘Mas vai entrar para a língua portuguesa?’. Para Arthur Marques de Oliveira, mestrando do PPG de Letras da UFRGS, existem questões mais latentes do que essa. “Para mim, o mais importante é o fenômeno. Por que agora os falantes estão querendo se marcar dessa maneira? Por que eles estão querendo se diferenciar dessa forma? É o momento de escutar isso.” 

Foto: Flávio Dutra/JU
Um assunto para todes 

Quando Mar, estudante de Psicologia, se percebeu uma pessoa trans, começou a sentir o desconforto cotidiano de quem convivia com elu. “Eu percebia muitas pessoas tendo vontade de mudar, de querer saber como me tratar, mas não sabendo como. Comecei a fazer posts no Instagram sobre linguagem neutra porque entendi que, assim como eu estava aprendendo, outras pessoas também podiam.” Mar Facciolla tem 22 anos, mora no extremo sul de São Paulo e cria conteúdo para internet sobre temas como linguagem não binária e saúde mental de pessoas LGBTQIAP+. 

Para além de levar informação, elu conta que o Instagram virou um lugar de rede de apoio. Pessoas de todo país foram se conectando com o conteúdo, e hoje muitas são amigues. Antes de entender o que significava a linguagem neutra, Mar tinha a ideia – muito divulgada – de que é um assunto “elitista”. 

“Eu não me sentia contemplade com os pronomes femininos e masculinos, mas ao mesmo tempo achava que usar a linguagem não binária com outras pessoas era excludente e elitista. Até que eu comecei a entrar em contato com pessoas as mais diversas e ver que a linguagem neutra era usada, inclusive, por pessoas periféricas, que não têm acesso à academia. Isso mudou minha forma de perceber tudo”

Mar Facciolla

No Instagram, elu auxilia pessoas, a partir de cards e vídeos, a visualizarem formas de incluir a linguagem neutra no dia a dia. Um dos assuntos que Mar reforça é a não utilização do “X” e do “@“ para neutralizar palavras. Apesar de ser ainda bastante recorrente na internet, o formato é criticado por impossibilitar a leitura e prejudicar pessoas com dislexia ou deficiência visual. Existem também formas na própria língua de não marcar o gênero, sem precisar do @ e do X. Em vez de usar ‘diretor’ e ‘diretora’, usar dirigente; de ‘aluno’ e ‘aluna’, estudante. Preferir dizer “o trabalho de Anna”, sem especificar o gênero do nome próprio (da Anna).

Douglas Ostruca, doutoranda do PPGCOM da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Fabico) da UFRGS, aponta que não se trata de se associar a linguagem neutra somente a pessoas não binárias. “A proposta é que ela possa ser usada em referência a qualquer pessoa, independentemente da forma como você se afirma socialmente.” Por isso a importância de que seja divulgada. “Por meio desse debate a gente se dá conta também sobre o quanto se pressupõe sobre o outro. Olhamos para outra pessoa e começamos a jogar códigos para reconhecer esse corpo.” A linguagem neutra convida a dar um passo para trás, reformular. 

Não pressupor – e, sim, perguntar! 

Laurie Martignago tem 33 anos, é cabelereire em Porto Alegre e há cerca de dois anos começou a se identificar como uma pessoa trans não binária. Por ser um processo ainda recente, enxerga a dificuldade por parte das pessoas de adesão ao pronome neutro e acaba, elu mesme, muitas vezes, utilizando o pronome masculino no cotidiano – apesar de preferir o neutro. Laurie conta que encontrar a possibilidade da não binaridade como expressão e identidade de gênero depois de 31 anos foi transformador. A questão da linguagem passou a ser mais central desde então.

“Depois de um tempo de transição, muitas pessoas ainda me chamam pelo feminino. Não vou dizer que não me incomoda, porque me incomoda um pouco”, conta. Essas situações geralmente acontecem com clientes de Laurie que passaram algum tempo sem ir cortar o cabelo. Alguns notam que a voz delu está diferente, e elu explica que está em processo hormonal (o T). “E aí as pessoas dizem ‘Meu deus, como eu te chamo agora?’, ficam muito nervosas, se desculpam muito”, relata. “E daí respondo: ‘Agora vocês sabem. Podem usar o pronome neutro’.”

Nos atendimentos, por trabalhar com proximidade à fala e à escuta de clientes, Laurie assume uma postura de não se referir no masculino ou no feminino até a própria pessoa se expressar. Tem se utilizado do hábito de perguntar mais frequentemente os pronomes – algo que considera positivo.

“Acho que a gente não tem que adivinhar o pronome de alguém. O correto mesmo é perguntar. Quando você pergunta, mesmo que seja uma pessoa binária, ela já entende que existe o não [binário]. Isso também é interessante para entender que não se trata de uma performance de ‘não binário’.”

Laurie Martignago

Não existe uma aparência que seja associada a qualquer identidade de gênero. Um dia, durante um atendimento, Laurie se deparou com essa questão quando um cliente relatou a elu que era uma pessoa não binária, mas por conta de sua forma de ser as pessoas sempre inferiam que era um homem cis. “Elu me disse que tinha demorado muito tempo para se identificar como uma pessoa não binária porque elu era ‘assim’ – em referência a como se vestia, como agia. Para as pessoas, elu não ‘parecia não binárie’”, conta. “Naquele momento, elu me disse preferir que muito mais pessoas perguntem os pronomes pelos quais elu gostaria de ser chamade. Porque elu diria: neutro.” 

Luísa Avencourt, estudante de Psicologia da UFRGS, também considera importante o movimento de perguntar “quais são teus pronomes?, como tu gostaria de ser chamada, chamado, chamade?”. Ela integra o Transenem – curso pré-ENCCEJA, pré-ENEM e pré-vestibular para a população LGBTQI+ – em Porto Alegre. Na experiência do coletivo, todes, aos se apresentarem, falam seus pronomes. Em sala de aula, professories utilizam o neutro. “Perguntar é uma forma de tirar o caráter de normal do binarismo. Perguntar leva a pessoa a pensar: ‘Calma aí, ninguém nunca me questionou sobre isso’”, explica. 

“Mas é importante fazer não só com pessoas trans. O mais interessante é fazer isso com todes”, sinaliza. Fazer parte da “norma” e, ainda assim, nomear-se pode ser um movimento de desestabilização e de compromisso com a luta através da língua. Eu, repórter, por exemplo, me chamo Anna e meus pronomes são ela/dela. 

“Existe uma força política muito grande em enunciar os próprios pronomes. Quando pessoas cis e binárias fazem isso, é como se dissessem para a sociedade que não é óbvio, que podem ter outra identidade”

Luísa Avencourt

Luísa se identifica como trans não binária e prefere a utilização dos pronomes femininos. No Transenem, ela atua dentro do núcleo de apoio psicopedagógico, lugar de acolhimento des alunes.

O movimento de identificação dos pronomes tem ganhado espaço nas redes. Em maio deste ano, o Instagram implementou para usuários de países como Estados Unidos e Reino Unido uma modalidade que permite a inserção de até quatro pronomes de gênero ao lado do nome da conta. A informação pode ser vista por qualquer pessoa ou apenas por seguidores. O recurso ainda não está disponível no Brasil. Durante o Mês do Orgulho, o Linkedin fez uma ação semelhante – inclusive no Brasil -, em que oferece um campo exclusivo para pronomes no perfil de quem utiliza a plataforma.

Foto: Flávio Dutra/JU
O respeito produz saúde 

“As pessoas se colocam na linguagem. É importante eu me sentir representade por aquilo que eu escuto. Não é à toa que temos gostos musicais, que temos sotaques. A nossa linguagem fala de nós”, explica Patrini Raimundo, psicólogue especializade em Saúde Mental Inclusiva LGBTQIAP+. A forma como nos colocamos e somos colocades na língua pode ser determinante, não só para a sensação de pertencimento. Pode gerar impacto em como uma pessoa vivencia a vida como um todo: a rotina, as idas a espaços de saúde, a presença nas redes, a experiência na universidade.

Durante o mestrado, no Recife, Nai Monteiro conta que, apesar de a maioria do corpo docente saber que ela é uma pessoa não binária e preferir os pronomes femininos, ainda há docentes que insistem em tratá-la no masculino.

“Se a pessoa pede para que você a trate dessa maneira, trate – independentemente de achar bonito, feio, de gostar ou não. Respeite quem exige respeito, porque a pessoa tem um motivo para fazer isso” 

Nai Monteiro

Nai avalia que a não binaridade desempenha um papel de estranhamento na educação. Existe um desconforto gerado em algumas pessoas não apenas com a mudança na linguagem, mas com o próprio rompimento do “cistema” (sistema em que o “cis” é uma norma). Por isso, é indissociável pensar questões de gênero de forma conectada às questões da linguagem neutra. O queer, lembra Nai, traz em sua origem latina o significado daquilo que “torce”, que rompe, que desestabiliza o que foi normatizado.  

“Pessoas não binárias em ambientes educativos desestabilizam porque fazem a gente se comportar de outra maneira que não aquela convencional, tradicional e, claro, binária”  

Nai Monteiro

Ao contrário do processo que vive na internet, onde conseguiu criar uma rede de afeto e acolhimento, o ambiente da universidade foi hostil para Mar. Mesmo utilizando pronomes neutros na sala de aula e sinalizando que era assim que gostaria de ser chamade, viveu episódios de desrespeito. No início, flexibilizava dizendo que poderia ser chamade no neutro ou no masculino, mas parou ao ver que acabava gerando sofrimento para si. “Deixei de usar pronomes masculinos porque percebi que isso me causava desconforto apenas para deixar outras pessoas confortáveis”, pontua.  

“Foi um processo de autorrespeito e de uma cobrança política, do tipo ‘Você vai ter que aprender a falar comigo se você quiser falar comigo’” 

Mar Facciolla

O respeito à identidade de cada pessoa tem impacto direto em sua saúde física e mental. Por diversas vezes, Mar relata ter deixado de ir a atendimentos de saúde porque sabia que viveria o constrangimento de não ter sua identidade respeitada. “É muito bizarro pensar que você precisa de uma assistência em saúde mental e evitar esse sistema porque, se você for lá, vai ter outra crise por um motivo diferente, agravando o sintoma”, desabafa.

A palavra dá lugar 

“Acho que o uso da linguagem não binária é mais do que sobre se sentir acolhide na língua. É como se a gente saísse da invisibilidade. Quando alguém, no Instagram, quer marcar um horário para cortar o cabelo comigo e me chama ‘oi, queride’, eu sinto que a pessoa me viu, me enxergou”, resume Laurie. 

Como ocorre com outros temas relacionados à comunidade LGBTQIAP+ no Congresso, somam-se os projetos que tentam proibir a utilização da linguagem não binária no Brasil. As tentativas são também para evitar que as discussões cheguem à escola, o que é, para Nai Monteiro, inevitável. A utilização correta dos pronomes de gênero e o uso do neutro na linguagem são temas familiares e que se multiplicam entre as gerações que estão chegando.

“Essa série de interdições reflete uma vontade de permanecer no status quo, no que está bom para quem está no lugar da hegemonia”, opina Nai. “O que garante que em uma pichação de porta de banheiro na escola alguém não escreva em linguagem não binária? E aí? Isso é uma coisa que a escola não controla. Pode ignorar, pintar a parede, mas quero dizer que essas temáticas chegam à escola, a gente querendo ou não.”

Trazer a discussão e o fenômeno para a sala de aula é diferente de escolarizar, curricularizar. Isso, na visão da pesquisadora, ainda está distante de acontecer e precisa ser projetado com cuidado e com o tempo. Um medo, porém, é preciso não ter: a linguagem não binária não vai destruir a língua portuguesa. De acordo com Nai, a linguagem neutra vem como uma outra opção, não como a única, a exclusiva ou a melhor.

A língua não vai acabar. Ela simplesmente está exercendo uma função de representar as pessoas que a utilizam. Ela não pode representar apenas a hegemonia. A dissidência também quer ser representada”

Nai Monteiro

Sobre o receio de não saber utilizar linguagem não binária porque “é difícil”, Mar lembra que o uso vem com a prática. Quando a gente é criança, começa a aprender o português com palavras simples. “A linguagem neutra vem com o tempo. A gente testando, errando, se corrigindo. É importante treinar, que nem se faz para o vestibular. Se você não quer magoar tal pessoa, começa a falar dela para outras pessoas antes de falar com ela. Se esforça, pratica, pensa, desautomatiza”, conclui.

Foto: Flávio Dutra/JU

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