Estrutura de dados no Brasil não permite verificar se vacinas contra Covid vencidas foram aplicadas

Publicado originalmente em Folha de São Paulo com contribuição de Observatório COVID-19 BR. Para acessar, clique aqui.

Sistemas de informação do Ministério da Saúde têm fragilidades e precariedades conhecidas

Na última sexta-feira (2), Folha publicou uma matéria com o título “Milhares no Brasil tomaram vacina vencida contra Covid; veja se você é um deles”. A matéria afirma que 26 mil doses fora de validade foram aplicadas em 1.532 municípios. Em breves manifestações, diversas prefeituras emitiram comunicados contradizendo tal afirmação.

O Observatório Covid-19 BR dedica-se a acompanhar diariamente, há mais de um ano, a dinâmica e os desafios da epidemia e, mais recentemente, da vacinação em curso, e conhece as precariedades e fragilidades dos sistemas de informação atuais do Ministério da Saúde. Cientes dos problemas nas bases de dados, o Conasems e o Conass (conselhos que representam gestores estaduais e municipais de Saúde) lançaram nota esclarecendo sobre os atrasos nas entrada de dados, reiterando que já vinham apontando o problema e cobrando, sistematicamente, o governo federal, para que tais debilidades pudessem ser superadas.

A matéria da Folha induz a equívocos pois, partindo de uma base de dados que possui inconsistências já há muito tempo sabidas, realiza cruzamento das datas de vacinação com validades de lotes de vacina, sugerindo que vacinas estariam vencidas no momento de sua aplicação.

Neste caso, seria importante verificar a confiabilidade dessa afirmação. Não se trata aqui de afirmar que tais inconsistências não mereçam destaque e cobrança por parte da mídia e da população em geral. Trata-se de um alerta em relação ao foco dado para o achado e o consequente impacto junto à população. Faz-se necessário demonstrar qual foi o procedimento para o cruzamento de dados e quais foram os critérios usados nesses cruzamentos.

Não há elementos sólidos para afirmar que brasileiros tomaram vacina vencida contra Covid. Assim como a equipe de reportagem, membros do Observatório Covid-19 BR verificaram essas informações, fazendo uma amostragem na base de dados. Na amostra analisada, o que foi encontrado sugere fortemente que se trata de erros de digitação nas bases de dados ou erros a partir da alimentação dos dados no sistema nacional (SI-PNI) a partir de sistemas próprios dos estados e municípios (1).

As debilidades dessas bases são conhecidas por pesquisadores e gestores, e também têm sido destacadas por jornalistas desde que foi iniciada a campanha de vacinação para imunizar a população, em janeiro de 2021.

É importante lembrar que o processo de registro de cada dose aplicada passa por uma série de etapa, como anotação manual dos dados do indivíduo, da dose aplicada e da data de aplicação, em ficha de papel no local de aplicação (a depender da infraestrutura local); posterior digitação dos dados no sistema informatizado, no SI-PNI ou sistema próprio local e, finalmente, transferência dos dados inseridos nos sistemas próprios locais para o sistema nacional.

Essa dinâmica varia entre os estados, municípios, e até mesmo entre locais de vacinação em um mesmo município. Cada uma dessas etapas está sujeita a erros, que vão desde anotação equivocada na ficha de papel ou no sistema informatizado local, até erros no processo de migração dos dados entre sistemas distintos. Essas inconsistências, embora importantes e necessitem constante validação dos dados já inseridos, de maneira geral não impactam análises agregadas como o cálculo do percentual da população já vacinada por faixa etária, por apresentarem um volume baixo frente ao total de registros. Porém, tornam-se obstáculos importantes para análises relacionadas aos chamados eventos raros, aqueles que ocorrem com relativa baixa frequência.

Vale ressaltar que as inconsistências correspondem a 0,7% do total de 3,9 milhões de vacinas já aplicadas da AstraZeneca, aproximadamente. Trata-se de um valor compatível com o que se espera para erros de digitação em bancos de dados (2), em linha com o que já foi encontrado em pesquisas sobre frequências de erro em bases de dados em saúde. A matéria, porém, não se vale de tal possibilidade explanatória das inconsistências.

Isso não significa que não possa ter havido vacina aplicada fora da data de vencimento, mas urge cautela antes de se declarar a origem dos problemas, enfaticamente, em especial com tal potencial de repercussão negativa e impacto sobre a vacinação.

O que os jornalistas identificaram foram inconsistências, infelizmente corriqueiras, que podem estar associadas a eventuais falhas vacinais por aplicação de doses vencidas, mas que muito provavelmente se devem apenas a incongruências entre bancos, problemas de digitação, exportação e inserção de dados, bem como de disponibilização das informações.

De fato, não se trata de terem encontrado aproximadamente 26 mil doses aplicadas fora do prazo de validade, mas, sim, 26 mil inconsistências nos campos associados, que merecem investigação para o acompanhamento adequado e, se necessário, a convocação dos indivíduos vacinados, caso seja constatado que de fato tenha ocorrido vacinação fora do prazo.

É preciso dar o devido destaque para a necessidade de melhorias nos sistemas de informações em saúde e à averiguação dos registros problemáticos, mas sem causar alarde desnecessário. A transparência e a consistência no dado público são essenciais para um melhor entendimento e a tomada de ação na pandemia, porém são igualmente necessárias em qualquer análise sobre esses mesmos dados públicos.

O Observatório, há mais de um ano, disponibiliza todas as bases de dados públicas por nós coletadas, bem como todos os passos de processamento que realizamos para chegarmos a qualquer conclusão sobre a real situação tanto da pandemia como da vacinação. Todos os nossos códigos e dados podem ser acessados em https://github.com/covid19br/

Por fim, o Observatório lembra que hoje, além de maior disponibilidade de vacinas, há premência na orientação intensiva à população. São necessárias parcimônia e coordenação tanto no combate à pandemia como na campanha de vacinação, bem como segurança sobre as informações publicadas.

1.https://pessoal.dainf.ct.utfpr.edu.br/lcjunior/lotes_vacinacao/lote-4120Z005.html
2. S.I. Goldberg, A. Niemierko, A. Turchin, Analysis of Data Errors in Clinical Research Databases. AMIA Annu Symp Proc.; 2008: 242–246. Acessível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2656002/ https://outline.com/3XaWxZ

Flávia Ferrari, Rafael Lopes, Brigina Kemp, Verônica Coelho, Luiz Celso Gomes Jr., Maria Amélia Veras, Marcelo F. C. Gomes e Roberto Kraenkel

Integrantes do Observatório Covid-19 BR, uma iniciativa independente que trabalha para disseminar informações de qualidade sobre a atual pandemia da Covid-19, baseando-se em dados atualizados e na metodologia científica.

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