Entre o público e o privado

Publicado originalmente em Jornal Beira do Rio. Para acessar, clique aqui.

Por Matheus Luz Ilustração Walter Pinto

É comum ver, na Região Metropolitana de Belém, ruas fechadas com portões, especialmente em vilas, vielas e conjuntos habitacionais. Essa medida pode parecer solução para monitorar o trânsito de pessoas em áreas residenciais e, assim, preservar a segurança de moradores da área. No entanto tal prática envolve um complexo debate jurídico sobre a apropriação do espaço público da cidade.

O ato de fechar e/ou restringir a circulação de pessoas em vias públicas é cercado de impasses jurídicos e sociais. A pesquisadora Clarice Costa Teles observou como as legislações podem acabar promovendo a privatização de espaços que, inicialmente, teriam destinação pública, mas, posteriormente, são agregados a espaços particulares e cercados por muros, afetando o princípio do uso democrático da cidade.

Na dissertação Se esta rua fosse minha… uma análise da privatização de espaços públicos na cidade de Belém e seus efeitos no uso democrático da cidade, a autora teve como objetivo “compreender a relação entre os aspectos jurídicos da Lei de Condomínios e Incorporações Imobiliárias (Lei nº 4.591/1964) e a apropriação privada de espaços públicos na cidade de Belém, considerando também a lei municipal que trata sobre o fechamento de ruas, vilas e alamedas (Lei nº 9.353/2018) e a lei federal de regularização fundiária (Lei nº 13.465/2017)”. O estudo foi orientado pela professora Daniella Maria dos Santos Dias e defendido no Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD/ICJ) da UFPA.

A investigação utiliza um estudo de caso do Conjunto Maguari, localizado na Região Metropolitana de Belém, para compreender a dimensão prática do debate sobre o fechamento de ruas e, assim, analisar como essa prática tem influenciado a apropriação de espaços públicos na capital paraense. “Realizei uma análise sobre o embate acerca da apropriação desses espaços e a legitimidade jurídica desta prática, levando em conta que esse embate está em movimento”, afirma a autora.

Obstáculos impedem mobilidade e serviços públicos

Clarice Teles explica que a privatização de espaços públicos consiste na construção de enclaves ou obstáculos que comprometem o acesso geral dos cidadãos nesses locais, a exemplo de grades e muros em vilas, alamedas ou ruas. Segundo a pesquisadora, alguns dos principais impactos práticos desses fechamentos incluem efeitos diretos na mobilidade urbana, interferências na realização de serviços públicos, como coleta de lixo, podas de árvores, acesso do corpo de bombeiros, entre outros, além de interferir na promoção de atividades de interesse público, como serviços elétricos.

No âmbito jurídico, o embate se estabelece com as divergências entre as leis que tratam da ocupação habitacional e as leis que apontam outras regulamentações sobre o espaço público. De um lado, existe um grupo que ampara o fechamento de uma rua baseado na Lei Federal nº 13.465/2017, na Lei Municipal nº 9.353/2018 e, em âmbito constitucional, no direito ao bem-estar dos habitantes da cidade (art. 182, caput) e no direito à segurança (art. 5º, caput).

Por outro lado, esse cercamento de um espaço público é confrontado com outros argumentos amparados constitucionalmente, como o princípio da igualdade (art. 5º, caput), ao favorecer determinados habitantes com o uso especial de um ambiente público. Esses espaços tornados restritos também ofendem os direitos à intimidade e à vida privada (art. 5º, inc. X), ao restringir e constranger pessoas com a identificação a terceiros para que possam ter acesso a determinado logradouro público, assim como compromete o direito à mobilidade urbana eficiente (art. 144, § 10, inc. I).

“Os resultados demonstram que a trajetória legislativa tem promovido a lógica de privatização de espaços que, inicialmente, têm destinação pública e, posteriormente, são apropriados e têm seu uso restrito somente aos moradores locais. O que antes era registrado como loteamento, atendendo à exigência de destinação de áreas públicas na localidade a ser loteada, passa a ser transformado em “área privada”, o que faz com que as áreas públicas sejam agregadas ao espaço intramuros”, destaca Clarice Teles.

Muros promovem exclusão, desigualdade e preconceito

Para a população em geral, a principal justificativa para o fechamento de ruas é a garantia da segurança dos moradores. Clarice Teles conta que esse posicionamento popular está apoiado no discurso do colapso da segurança pública em Belém, como o medo de assaltos e outras ações criminosas. Contudo o debate apresentado no estudo argumenta a respeito das transformações decorrentes dessa nova organização do espaço, que modifica as interações sociais da cidade.

Nesse sentido, a pesquisadora reflete sobre a construção de “mundos isolados” dentro da cidade, uma vez que a população não confia na atuação do Estado em prover a segurança necessária, criando, dessa forma, um espaço excludente, com base nas desigualdades. A autora chama atenção para esse tipo de visão que naturaliza preconceitos contra determinados grupos sociais vistos como perigosos, como pretos, pobres e refugiados. Tais preconceitos são, inclusive, reproduzidos entre as próprias vítimas nas periferias da cidade.

O fator da violência também está diretamente ligado à perspectiva e ao interesse econômico que cerca a privatização desses espaços públicos ao associar o valor financeiro do loteamento habitacional à produção de uma estrutura fechada, baseada no valor da segurança privada.

“É perceptível a entrega da responsabilidade de encontrar soluções para problemas que foram elaborados socialmente à esfera individual – tal como a segurança, que deixa de ser matéria eminentemente tratada pelo Estado para, aos poucos, ser apropriada pela segurança privada. Assim, vê-se que a segurança tem sido gradualmente redesenhada pelo próprio Estado, sendo, aos poucos, afastada do âmbito da proteção institucional estatal e direcionada ao âmbito do mercado”, argumenta a pesquisadora.

Para Clarice Teles, é necessário visualizar alternativas mais democráticas para a formação da cidade, em vez da disseminação e da naturalização de estratégias de contenção do medo individualistas que favorecem a lógica financeira de apropriação de espaços públicos.

Beira do Rio edição 160

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