Empatia e mentalidade profissional em tempos de pandemia

Publicado originalmente em Editorial J. Para acessar, clique aqui.

Por: Fabiane Cunha (6º semestre) | Foto: Reprodução/Creative Commons.

Profissionais de saúde relatam momentos difíceis em um trabalho que exige esforço emocional

A reportagem a seguir foi produzida durante um período em que a pandemia estava descontrolada. Portanto, o cenário descrito atualmente não existe mais. Porém, é válido ressaltar a importância dos cuidados para com a saúde mental no atual período e nos acontecimentos posteriores.

“A medicina, do jeito como foi construída, não está preparada para lidar com a morte”.

A frase dita pelo médico intensivista Mauro dos Anjos descreve uma das maiores dificuldades da profissão: o cuidado com pacientes em estado grave. Não é exagero afirmar que a pandemia de Covid-19 contribuiu – e continua contribuindo – para a expansão dessa linha de raciocínio. Mais de 600 mil brasileiros perderam a batalha contra um vírus repentino e implacável. Dentre todas as vidas perdidas desde o começo da pandemia estão as de profissionais de saúde que lutaram contra uma doença ainda pouco levada a sério por uma parcela da população. A atual situação pandêmica é uma experiência rara na ciência e na vida social. Os acontecimentos geram estresse crônico, o que leva muitas pessoas a apresentarem diversos tipos de transtorno mental. Mesmo assim, profissionais de saúde que atuam na linha de frente precisam conciliar o trabalho estressante que muitas vezes causa um abalo emocional interno.

Trabalhando em hospitais de São José, Santa Catarina (Hospital Regional de São José e Hospital Unimed), Mauro classifica a intubação do paciente como o momento mais difícil de seu trabalho em uma UTI de Covid. “É um abalo emocional enorme saber que, ao ser intubado, esse paciente terá poucas chances de sobreviver e não poderá se despedir da família”, diz o médico. A verdade é que ninguém tem um preparo para lidar e aceitar a morte. A psicologia classifica esse despreparo como Os cinco estágios do luto, propostos pela psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross. São eles: negação, raiva, barganha, depressão e, por fim, aceitação. Entre os profissionais de saúde que trabalhavam em hospitais durante os períodos caóticos da pandemia há desesperança, desespero, medo – do aumento no número de casos, de ser infectado e infectar outras pessoas, da morte. Profissionais de saúde apontam que uma situação de pandemia gera maiores casos de estresse pós-traumático, depressão, ansiedade e comportamentos suicidas.

Mauro afirma que criar uma boa relação com familiares de um paciente intubado gera maior empatia e auxilia profissionais de saúde na hora de dar a notícia que ninguém espera receber: a morte. Afinal, é um sofrimento compartilhado e que faz cada pessoa apoiar uma a outra ao mesmo tempo. Segundo o médico, é essencial profissionais de saúde saberem o quanto um familiar conhece sobre a doença, pois isso facilita dar a notícia de forma menos impactante. A medicina é ensinada para que haja uma boa conexão emocional entre médico e paciente. Porém, antes da pandemia, tinha-se a ideia de que esta é uma profissão sem sentimentos, que faz seus adeptos agirem com mais frieza por conta da impossibilidade de salvar a todos, mesmo tentando. “Agora as pessoas discutem a medicina de forma profunda, mas com um conhecimento superficial”, afirma Mauro.

Apesar de, na maioria dos casos, ser a profissão mais reconhecida, a medicina é uma área com poucos registros de profissionais infectados – uma média de 20 mil casos no Brasil durante o primeiro semestre de 2021. Os maiores números estão entre auxiliares ou técnicos de enfermagem (59,6 mil) e enfermeiros (25,7 mil). Essas pessoas estão expostas ao vírus e ao sofrimento, tanto pessoal quanto das famílias de pacientes que vieram a óbito. “Quando algum familiar faz o reconhecimento do corpo da vítima é a última vez que ele a verá, pois o velório é com caixão fechado”, diz a enfermeira do Instituto de Cardiologia – Hospital Viamão, Aline Campos. Para ela, o momento mais difícil é ver um paciente desesperado ao saber que será intubado por conta da dificuldade respiratória. “Muitos falam de suas famílias: ‘Eu tenho três filhos, não posso morrer’”, diz Aline. Quando ocorre um óbito e algum familiar reconhece o corpo a enfermeira ouve a pergunta “ele falava de mim?”, ou histórias de vínculos familiares que muitas vezes são difíceis de escutar devido à emoção negativa do momento. Aline afirma que alguns profissionais tentam realizar um bloqueio emocional para que não haja um abalo maior.

Segundo Aline, a porcentagem de óbitos em relação ao número de pessoas infectadas é baixa – mas não em uma UTI. “Estamos vivendo o momento mais crítico das nossas carreiras, porque temos que fazer muitas horas de plantão e as partes emocional e mental são mais difíceis de controlar”, afirma a enfermeira. Quando um paciente que parecia estar evoluindo bem e quase saindo do hospital acaba por falecer, alguns profissionais se sentem impotentes por não conseguirem salvar aquela vida. Aline diz que as equipes do hospital conversam entre si para não tornar esses pensamentos rotineiros, já que muitos trabalhadores voltam para casa em desespero.

O excesso de trabalho pode gerar sérias consequências psíquicas, como a Síndrome de Burnout. A doença causa exaustão extrema, pressão alta, insônia, sentimentos de incompetência, desesperança e insegurança, dentre muitos outros. Profissionais de saúde estão sendo ainda mais afetados pela síndrome no atual momento – cerca de 80% apresentaram sintomas de qualquer tipo de doença mental, segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas. Isso acaba gerando um maior índice de depressão e comportamentos suicidas nos trabalhadores. A taxa de suicídio entre profissionais de saúde, especialmente enfermeiros, é de três a cinco vezes maior do que na população mundial, conforme dados da Organização Mundial da Saúde. Aline Campos diz que no hospital onde trabalha alguns profissionais se afastaram das tarefas ou foram internados devido ao desgaste na saúde mental.

Médico pediatra no Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, Luciano Remião Guerra diz que entre março e abril deste ano foi necessária a criação improvisada de três UTIs para atender pacientes adultos e crianças com covid. “A sala adulta e pediátrica se transformou em uma UTI gigante, com vinte leitos de um lado e dez do outro”, diz o médico. Profissionais especializados no atendimento a crianças foram designados para reforçar a equipe do hospital em UTI de adultos. Segundo Luciano, o número de internação de crianças diminuiu drasticamente devido ao fato de a gravidade do vírus ser menor nesse público. “O isolamento social protegeu as crianças de outras doenças infecto-respiratórias, além de covid, que surgem em épocas mais frias”, diz. Entretanto, a baixa nas internações causou estresse na equipe pediátrica por conta da necessidade de diminuir gastos no hospital. “Tivemos que remanejar muitos pediatras e diminuir a escala de trabalho ou acertar demissões. Isso desmantelou a equipe”, revela Luciano.

No começo da pandemia, as internações e mortes eram de pessoas idosas. Agora, após mais de um ano, os pacientes variam entre todas as idades. Em alguns casos, adultos entre 30 e 40 anos são internados em estado grave – muitos deles sem qualquer comorbidade. “Para um médico que atende esses pacientes é mais fácil ter empatia, porque você se enxerga no lugar daquela pessoa. Nós fazemos a ponte entre o paciente e a família ao emprestarmos nossos celulares para que eles possam conversar em algum momento”, diz Luciano. Pediatras foram escolhidos para realizar essa comunicação entre a equipe de terapia intensiva e as famílias. Luciano revela que a comunicação efetiva da equipe de pediatria é melhor que a realizada pela equipe responsável por pacientes adultos, pois, segundo ele, a sensibilidade nos profissionais é mais visível. Por conta disso, é normal surgir uma relação de amizade entre médicos e familiares.

A pandemia trouxe problemas sociais e mentais à população. A área da saúde teve um aumento considerável no número de profissionais que desenvolveram algum transtorno mental, especialmente Síndrome de Burnout. A Associação Paulista de Medicina levantou dados de uma pesquisa realizada com cerca de 2 mil médicos: 59% afirmaram sentir sobrecarga em relação ao trabalho; 63,5% sofrem de estresse; 69,2% sofrem de ansiedade; 49% relataram exaustão física ou emocional. O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece serviços de Assistência Psicossocial. Profissionais de saúde mental relatam dificuldades no tratamento de trabalhadores de saúde. Para isso, são debatidos aspectos sobre pesquisas que devem ser realizadas para avaliar qual a melhor forma de contribuir para o atendimento com políticas públicas de saúde mental. 

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