Como o resultado das eleições nos EUA afeta o mundo

Publicado originalmente em Guia do Estudante por Taís Ilheus e Juliana Morales em parceria com Café com Mapa. Para acessar, clique aqui.

Os eleitores americanos têm até terça-feira (3) para escolher o ocupante da Casa Branca pelos próximos quatro anos. Lá, diferentemente do Brasil, é possível votar antecipadamente e até enviar o voto por correio – o que vem gerando debate sobre possíveis fraudes e dúvidas sobre quanto tempo vai demorar a contagem por lá. Não há dúvidas de que o mundo todo estará esperando ansiosamente o resultado. Se o republicano Donald Trump será reeleito ou se o democrata Joe Biden assumirá a presidência do país, que é a maior potência global, ainda que não mais hegemônica.

O processo de eleitoral nos Estados Unidos, é bom lembrar, é diferente do do Brasil. Lá, o voto é facultativo e a eleição não é direta. Ou seja, ter a maioria dos votos da população não garante a vitória do candidato. Em 2016, a democrata Hillary Clinton teve quase 3 milhões de votos a mais do que Trump. Mas ele venceu por uma margem apertada entre os delegados. Como assim? Pois é. Cada Estado tem direito a um número de delegados (que varia conforme os representantes na Câmara) e, em todos os 50, exceto dois (Maine e Nebraska), quem ganha no voto popular, leva o voto dos delegados do Estado. O candidato que tiver maioria simples entre os delegados está eleito. O sistema, que data do século 18, tinha a intenção de reduzir o poder do voto popular (numa nação que saía do regime escravocrata) e equilibrar o poder entre Estados mais e menos populosos.

O sistema é bastante complexo e cheio de detalhes. Você ouviu falar do voto pelado na Pensilvânia? Lá é preciso colocar o voto em dois envelopes – bem vestido, portanto – para que ele seja contabilizado! E, por isso, há chance de os candidatos questionarem na Justiça o resultado. Trump já disse, por exemplo, que não se pode confiar no voto por correio, abrindo brechas para reclamações em caso de derrota. Em 2000, o democrata Al Gore chegou a pedir a recontagem dos votos na Flórida para questionar a vitória de George W. Bush, o que elevou as incertezas sobre o processo eleitoral nos Estados Unidos.

Como se o cenário já não fosse complicado o bastante, em 2016, a Rússia interferiu na campanha em favor de Trump, segundo a Justiça e o serviço de inteligência dos Estados Unidos. Houve espionagem, disseminação de fake news nas redes sociais e até organização de manifestações que pareciam espontâneas, mas eram forjadas. A desconfiança sobre o processo eleitoral americano fez com que o país deixasse de ser considerado uma democracia plena no ranking elaborado pela Economist Intelligence Unit. Desde 2016, os EUA são qualificados como uma democracia com falhas.

Desde setembro, empresas americanas como a Microsoft e serviços de inteligência dos Estados Unidos como o FBI têm alertado para uma possível intervenção de alguns países no processo eleitoral deste ano. Um relatório apresentado por um alto funcionário da inteligência norte-americana acendeu o alerta sobre Rússia, China e Irã, nações que, de acordo com o documento, podem usar “medidas para influenciar, aberta ou veladamente” o resultado das eleições.

Agora que você já sabe mais sobre o processo eleitoral americano e toda sua complexidade, vamos te ajudar a entender as consequências dessa eleição para o mundo. Para isso, o GUIA DO ESTUDANTE conversou com a professora e geógrafa Paula Favarato, criadora do podcast de atualidades e geopolítica Café com Mapa.

O que querem os russos com Trump 

O esforço já comprovado dos russos para intervir na eleição presidencial norte-americana de 2016 (e uma possível nova tentativa neste ano) parece sugerir, em um primeiro momento, que os russos acreditam ganhar algo com a vitória do republicano Donald Trump. Mas, na verdade, trata-se mais de uma “redução de danos”, de acordo com Paula Favarato.

A professora afirma que o discurso anti-Rússia sempre foi mais forte entre democratas. Prova disso é que o agora candidato Joe Biden falou, em uma de suas visitas à Rússia, quando ainda era vice de Barack Obama, que Vladimir Putin deveria parar de se candidatar à presidência. O comentário foi visto como uma afronta pelo presidente russo. Por isso – e pelo histórico de relações mais amigáveis com ex-presidentes republicanos como George W. Bush, que já recebeu Putin em sua casa – , o país oponente dos Estados Unidos durante a Guerra Fria acredita que a vitória de Trump poderia significar um discurso mais ameno e relações mais tolerantes.

É claro que nem tudo foram flores entre os dois países. Nos últimos quatro anos, Trump impôs diversas vezes sanções às autoridades russas e atuou contra os interesses econômicos do país, dificultando, por exemplo, o projeto de expansão dos gasodutos russos pela Europa, como apontou o colunista do jornal Washington Post, Ishaan Tharoor.

Ainda assim, foi mais tolerante do que possivelmente teria sido um democrata. Por isso, os russos veem em Joe Biden, mais do que em Trump, uma ameaça aos interesses do país. “Se Biden for eleito, teremos de encarar a consolidação do Ocidente em uma plataforma contra a Rússia”, afirmou Andrey Kortunov, presidente do Conselho Internacional de Assuntos Russos do Kremlin em entrevista à Bloomberg.

A guerra comercial com a China

A China, outro país que aparece no relatório produzido por forças da inteligência americana, seria, segundo fontes de dentro do governo Trump, “uma ameaça muito maior do que a Rússia”, conforme publicou a BBC. Não é preciso ir muito longe para entender o porquê. Os Estados Unidos estão em guerra comercial contra a China há pelo menos três anos, com a imposição de sanções e tarifas comerciais de ambos os lados. O documento da inteligência dos Estados Unidos afirmou, também, que Pequim vê em Trump uma figura imprevisível e por isso prefere que ele não seja reeleito.

Embora a tendência de boicote à China – que desponta como grande potência mundial já há alguns anos – anteceda a chegada de Trump à Casa Branca, a guerra comercial entre os dois países ganhou novas cores com o discurso “extremamente antiglobalização e protecionista” do presidente republicano, como explica Paula. Já os democratas evocam uma perspectiva diferente em relação à política internacional e relações comerciais, sendo mais favoráveis à globalização e, portanto, menos agressivos em relação ao avanço da China.

O Irã e o que ele diz sobre a relação de Donald Trump com países árabes

As relações dos governos republicanos com os países árabes nunca foram amistosas, e o governo Trump fez, a seu modo, jus a essa tradição. Basta relembrar algumas medidas da Casa Branca desde 2016 para entender por que o Irã torce – e segundo a inteligência americana, atua – pela eleição de Joe Biden.

Em um discurso exibido pela televisão estatal iraniana em janeiro deste ano, o presidente do Irã Hassan Rohani fez duras críticas ao presidente americano ao discutir a questão nuclear no país e a influência de Trump sobre os países europeus, em especial a Inglaterra. “O que Trump faz senão romper com acordos e violar a lei internacional? Não sei em que o primeiro-ministro em Londres pensa ao sugerir que nós devamos abandonar o acordo nuclear e implementar o acordo de Trump”.

Em 2018, depois de 15 meses no governo, Trump anunciou oficialmente o rompimento do acordo nuclear firmado entre Estados Unidos e Irã durante o mandato de Barack Obama, que havia atenuado as tensões entre os dois países, retirando as sanções econômicas e comerciais impostas ao país árabe e fazendo-o, em contrapartida, se comprometer com a redução das atividades nucleares.

Outro acontecimento durante o mandato de Trump que desagradou o Irã e ameaçou a paz entre as duas nações foi a morte do general iraniano Qassem Soleimani durante um bombardeio ordenado pelo presidente americano.

Por fim, Paula Favarato destaca também a postura radicalmente pró-Israel adotada pelo governo dos Estados Unidos nos últimos anos, que mais uma vez o opõe ao Irã (pró-Palestina).

Vale lembrar, porém, que as relações dos EUA com outras nações islâmicas, como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, se estreitaram sob Trump, numa tendência diferente da do Irã. Vale lembrar que, em agosto, Trump presidiu a assinatura de um acordo que normalizou as relações de Bahrein e dos Emirados com Israel que, em troca, prometeu frear a anexação de territórios palestinos.

Fora do relatório, mas dentro do jogo internacional: outros países que perdem caso Trump seja reeleito

Como nem só de Rússia, Irã e China se faz a política internacional, a professora Paula destaca ainda outros países, ou conjunto deles, que embora não estejam abertamente intervindo nas eleições americanas, torcem para que o republicano Donald Trump não seja reeleito. A União Europeia está nesse bloco.

Alinhado ideologicamente ao primeiro-ministro Boris Johnson, Trump foi uma figura importante ao apoiar e posteriormente comemorar a saída do Reino Unido da União Europeia. O presidente americano prometeu diversas vezes ao premiê britânico uma grande aliança comercial caso este promovesse o Brexit. E já chegou a afirmar que a União Europeia é “pior do que a China”.

Por fim, outros países sofreram grandes retrocessos nas relações diplomáticas e comerciais com os Estados Unidos durante o governo Trump, como Cuba – que começava a aproximar-se dos EUA no governo Obama – e a Venezuela. A reeleição do atual presidente significaria um isolamento e aprofundamento da crise nesses países.

O caso paradoxal do Brasil

O Brasil não está a salvo dos efeitos negativos do posicionamento extremo de Trump contra a globalização. O alinhamento de Jair Bolsonaro com o presidente republicano, alias, já colocou o país em uma posição delicada no mercado internacional, uma vez que Trump trava um guerra comercial contra a China, a principal parceira no comércio exterior brasileiro.

Ainda assim, o Brasil está entre os países que acham que ganhariam com a reeleição do Trump, diante da forte parceira ideológica dos dois presidentes. A especialista, entrevistada pelo GUIA, explica que, com este resultado, o governo brasileiro não precisará redirecionar a política externa, de apoio incondicional.

Em julho, quando a aprovação de Trump caiu drasticamente devido à má condução do combate ao coronavírus, com um número assustador de mortes, Bolsonaro, com uma postura semelhante à do americano em relação a pandemia, expressou sua preocupação com a derrota do republicano.

Se o resultado for a favor do Partido Democrata, o cenário é bem diferente para o Brasil. O governo brasileiro continua resistente em construir uma ponte em direção a Biden, caso ele vença, como mostrou reportagem da Revista VEJA.

“Com uma troca de poder girando para democratas, a política brasileira terá que dançar como uma nova música, mas ela não é nem um pouco simpática ao governo brasileiro, tanto em termos econômicos, quanto sociais e ambientais”, afirma Paula. Se Biden chegar ao poder nos EUA, por exemplo, ele pode adotar um posicionamento mais firme em relação à devastação da Amazônia, batendo de frente com a postura negacionista do governo Bolsonaro com o meio ambiente.

Outro ponto que entra em jogo ao falar do impacto das eleições americanas é a entrada do Brasil na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), conhecido como o “clube dos países ricos”, um grande objetivo do mandato de Bolsonaro.

Para alcançá-lo, o presidente brasileiro necessita do apoio dos Estados Unidos. E com Trump no poder é mais fácil obtê-lo, como foi visto em fevereiro deste ano, quando o Departamento de Comércio americano informou a retirada do Brasil da lista de países em desenvolvimento, o que garante tratamento preferencial para o país nas negociações. Já a vitória de Biden representa a incerteza desse suporte.

Em texto sobre o resultado das eleições nas relações comerciais e políticas no Brasil, Rodrigo Fernando Gallo, professor de Política e Relações Internacionais do Instituto Mauá de Tecnologia, faz um resumo dos dois cenários possíveis: “a vitória de Biden poderia, supostamente, aliviar essa pressão, uma vez que o democrata eventualmente cessaria a polarização com a China. No entanto, a vitória de Biden representaria o fim do acesso privilegiado que Bolsonaro e seu staff têm à Casa Branca. Então, o que podemos concluir é que, politicamente, a vitória de Trump manteria o diálogo atual do Brasil com os Estados Unidos”.

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