Atletas abertamente trans participarão das Olimpíadas pela primeira vez na história

Publicado originalmente em Jornal da Universidade por Mathias Boni. Para acessar, clique aqui.

Direitos Humanos | Ativistas acreditam que a presença desses competidores nos jogos de Tóquio contribui para diminuir o preconceito que existe na sociedade

*Foto de capa: Marco Mantovani/FISPES

Os jogos Olímpicos e Paralímpicos de Tóquio entrarão para a história como os primeiros com a participação de atletas trans. Na última semana foi confirmada a vaga de Laurel Hubbard, levantadora de peso neozelandesa. Além dela, outros atletas podem confirmar participação, incluindo na Paralimpíada, como a corredora italiana Valentina Petrillo.

Apesar de a liberação oficial do Comitê Olímpico Internacional (COI) para a participação de pessoas trans nos jogos ser de 2003, até hoje nenhum atleta abertamente transexual ou transgênero participou das competições. O debate acerca de atletas trans iniciou no âmbito do COI em 1990, mas a primeira pessoa trans a assessorar o comitê, a pesquisadora estadunidense Joanna Harper, iniciou a sua colaboração apenas em 2015. Doutora em Física Médica, ela direcionou suas pesquisas à participação de atletas trans no esporte.

“Já passou muito da hora de vermos atletas abertamente trans participando das Olimpíadas e Paralimpíadas. Estatisticamente, deveríamos ver uma participação muito mais significativa. Eu espero que a presença de atletas abertamente trans nas Olímpiadas possa, sim, gerar maior consciência em relação à presença de atletas trans no esporte e também de pessoas trans na sociedade como um todo”, afirma.

Valentina Petrillo participa de alguns estudos realizados por Harper. Valentina desenvolveu uma patologia ocular aos 14 anos, o que prejudica parcialmente a sua visão. Antes de sua transição, ela já participava de competições masculinas. A atleta começou a sua terapia hormonal em 2018 e em setembro passado voltou a participar de competições, dessa vez femininas, se transformando na primeira atleta trans de todos os tempos a representar a Itália em eventos esportivos oficiais.

“O esporte me faz sentir livre. Posso eliminar barreiras discriminatórias tanto como pessoa com deficiência quanto como pessoa trans. Continuo praticando esportes porque hoje, como pessoa trans, me sinto completa, e quero viver a vida que sempre sonhei como esportista e como mulher”, reflete.

Valentina competiu recentemente no Campeonato Europeu de Atletismo Paralímpico, e a equipe italiana garantiu vagas nos jogos para algumas das provas em que ela participa. As vagas das competidoras que representarão a Itália em Tóquio serão decidias no Campeonato Italiano de Atletismo, a ser realizado nos dias 3 e 4 de julho. A expectativa é de que Valentina seja uma das representantes, o que faria dela a primeira atleta trans a participar das Paralimpíadas.

A participação de atletas trans nos jogos de Tóquio será o primeiro passo desse grupo dentro do maior evento esportivo do planeta. Para Luíza Eduarda dos Santos, jornalista e uma das principais militantes pelos direitos das pessoas trans no Rio Grande do Sul e no Brasil, ter atletas abertamente trans competindo nas Olimpíadas será fundamental para o progresso do debate.

“Eu vejo a participação dos atletas trans como muito importante, independentemente do desempenho que venham a ter nas suas modalidades. Não importa se ganharem medalha ou se forem eliminadas na primeira rodada. Esse é o primeiro passo, e todo primeiro passo é o mais importante. Se não tiver o primeiro, não tem o segundo nem o terceiro, e não temos evolução”, conclui.  

A levantadora de peso Laurel Hubbard durante sua participação no campeonato mundial de 2019, em Pattaya, na Tailândia (Fotos: Reprodução/Olympic Channel)
Transição e controle hormonal

Eric Seger, professor de Educação Física e mestre em Educação, concorda com a importância da participação de atletas trans nas Olimpíadas, mas ressalta que essa discussão precisa se aprofundar também no campo acadêmico.

“A participação de atletas trans nas Olimpíadas será fundamental, mas também é importante avançarmos na Academia e na Educação. A gente precisa educar as pessoas em relação a esse assunto, produzindo as ferramentas educacionais corretas para entendermos e saibamos interpretar de forma adequada, sem vieses preconceituosos, a participação de atletas trans no esporte”

Eric Seger

Sua dissertação do mestrado no PPG em Educação da UFRGS discute a presença de pessoas trans no esporte, ambiente marcado pela cisnormatividade. A argumentação principal de quem é contra a participação de atletas trans no esporte, principalmente de mulheres trans em competição com mulheres cis, é a suposta vantagem física, argumento com que Eric não concorda.

“Todos os estudos já feitos até hoje não demonstraram nenhuma grande vantagem atlética nem isso é observado nos resultados práticos das competições. Mas há também uma outra questão relacionada ao preconceito com atletas trans: sempre que uma atleta trans faz algo positivo, falam que ela fez isso porque antes era homem, e quando um atleta trans faz algo positivo, falam que ele fez porque estava dopado, usando hormônios demais, tirando seus méritos. Quando há um viés preconceituoso, as narrativas confluem para a ideia de que as pessoas trans não devem estar naquele lugar”, diz.  

Hoje o Comitê Olímpico Internacional não obriga mais atletas trans a realizar a cirurgia de mudança de sexo para competir, requisito obrigatório até 2015. Além da autodeclaração de gênero, há um controle hormonal para que os atletas trans sigam parâmetros exigidos para competição. No caso das mulheres, por exemplo, a principal exigência é ter o nível de testosterona abaixo de 10nmol/L de sangue, com controle realizado durante os doze meses anteriores à competição de que irá participar.

Diferentes esportes demandam exigências corporais diferentes. Por isso, determinadas características físicas podem representar vantagens em alguns esportes, mas em outros não. Ainda é preciso lembrar que atletas trans passam por uma grande mudança física e hormonal quando realizam sua transição.

“Até depois da terapia de hormônio, as mulheres trans irão, em média, ser mais altas ou até mais fortes que as mulheres cisgênero. Nós, contudo, permitimos isso no esporte, pois as atletas, mesmo as cisgêneras, já não têm a mesma altura ou o mesmo peso entre elas. O que não permitimos é que um grupo tenha uma vantagem que o faça ganhar sempre, em todas as competições. Nesse contexto, não há evidência prática de que mulheres trans que passaram pela terapia hormonal ganhem suas provas ou jogos de maneira desproporcional, pelo contrário”, afirma Joanna Harper.

A corredora italiana Valentina Petrillo não fez a cirurgia de mudança de sexo, mas já realiza o tratamento hormonal há mais de três anos.

“Os caminhos para acessar as terapias hormonais são muito difíceis. O preço é alto, e o processo é anteriormente conduzido por psicólogos, sendo apenas um pequeno número de pessoas que chega a ter acesso à terapia hormonal, que é uma mudança muito grande física e mental. Após, a terapia é monitorada por uma equipe médica especializada, que precisa autorizar sua condição para competir. Por isso, tantos anos após a entrada em vigor das diretrizes do Comitê Olímpico Internacional, são poucas as mulheres trans que competem em alto rendimento”

Valentina Petrillo

Eric Seger lembra que o debate sobre a participação de atletas trans no esporte antecipa um problema que hoje sequer existe. “Uma situação hipotética seria se, dentro de 10 anos, a gente observar uma grande quantidade de atletas trans nas categorias de alto rendimento, e que elas vêm ganhando boa parte das competições, sendo provado um nexo causal entre sua condição de pessoa trans e seus resultados; aí realmente poderemos pensar que isso é um problema concreto. Hoje não temos nada nem perto disso, é uma quantidade ínfima de pessoas trans que compete, então estamos condenando pessoas individualmente somente para materializar uma fantasia das pessoas cis”, reforça.

Valentina Petrillo busca índice para competir nos Jogos Paralímpicos de Tóquio em evento da Federação Italiana de Esportes Paralímpicos e Experimentais/FISPES. A atleta pode se tornar a primeira mulher transgênero a competir em uma olimpíada (Foto: Marco Mantovani/FISPES)
O debate jurídico no Brasil

Existem projetos de lei no país que visam barrar juridicamente a participação de atletas trans no esporte. O mais notório é o PL n.º 346/2019, proposto na Assembleia Legislativa de São Paulo, de autoria do deputado estadual Alteir Moraes. São Paulo é justamente o estado onde atua a jogadora de vôlei Tifanny Abreu, que é a atleta trans mais famosa do Brasil. O Projeto de Lei, até hoje, não foi votado pela assembleia paulista. Esse fato se deve, em grande parte, à luta da deputada estadual Erica Malunguinho, que foi a primeira deputada transexual eleita em São Paulo.

Para a advogada Monica Sapucaia Machado, doutora em Direito Político e professora de Pós-graduação em Direito Público, esses debates, do ponto de vista do Direito Brasileiro, são um desperdício de gasto e energia. “O Estado brasileiro definiu que aceita que a pessoa passe a determinar o seu próprio sexo e também a fazer cirurgia para adaptar o seu corpo. Reconhecida essa possibilidade, para o Estado, uma mulher trans é exatamente a mesma coisa que uma mulher cis, com rigorosamente todos os mesmos direitos”, destaca.

“As instituições e confederações esportivas podem ser privadas, mas não podem restringir direitos que o Estado brasileiro já reconheceu. Algumas pessoas falam: ‘Ah, mas na adolescência era homem, o músculo desenvolveu mais, etc.’, mas isso são filigranas, detalhes não importantes para pegar uma coletividade e excluir um direito. ‘Nós já autorizamos as pessoas a declararem e mudarem o sexo’ não é o mesmo que ‘Autorizei a mudar de sexo, mas para o esporte não’ ou ‘Autorizei a mudar de sexo, mas para o vôlei não’. Com o Direito brasileiro autorizando e reconhecendo como direito fundamental, acabou o debate”

Monica Sapucaia Machado
O esporte como agente de transformação social

Os argumentos de pessoas que são contra a participação de atletas trans no esporte, muitas vezes, refletem uma ideologia transfóbica. Além disso, reforçam estigmas a uma população que já é extremamente marginalizada e violentada, ainda mais no Brasil, que é o país que mais mata pessoas trans no mundo. “Há muitas pessoas que enxergam na questão das pessoas trans no esporte uma luta antiLGBTQIA+ que podem vencer. As mesmas pessoas também insistem em promover legislações para limitar os direitos e as vidas de pessoas trans, mostrando suas verdadeiras intenções”, define Joanna Harper.

Além da grande mudança física por que atletas trans passam, também precisam lidar com grande quantidade de julgamentos e comentários negativos. Essa carga de preconceito que enfrentam apenas por serem como são não recai sobre atletas cisgêneros.

“Pessoas trans sofrem de um alto grau de problemas de saúde mental e bem-estar. Quando adicionamos o julgamento e a falta de aprovação da sociedade, observamos que as pessoas trans têm desvantagens psicossociais significativas quando em comparação com pessoas cis, o que também se reflete no esporte com as atletas. E as desvantagens psicossociais enfrentadas pelas atletas trans são muito mais significativas do que qualquer vantagem física que essas atletas possam ter”

Joanna Harper

Eric Seger trabalha em suas pesquisas com um conceito chamado Cissexismo, que busca chamar a atenção para as desigualdades que as pessoas trans sofrem. “Cissexismo vem na esteira de outros termos similares, como racismo, mas aplicado às pessoas cisgêneras. Ser cisgênero também é um privilégio social, assim como ser branco ou ser heterossexual, pois a nossa sociedade foi construída para funcionar melhor para esses grupos, então esse termo visa fortalecer o reconhecimento dos direitos das pessoas trans”, explica.

O esporte pode, e deve, ser um caminho para mudar essa realidade. Devido à sua grande visibilidade e ao seu envolvimento com a paixão das pessoas, as competições esportivas também têm a função de produzir ídolos, que se transformam em verdadeiros heróis. Até hoje, nenhum atleta trans teve essa oportunidade em uma Olimpíada, por exemplo.  

“No último ano, tivemos 28 vereadoras trans eleitas em todo o Brasil, então a gente percebe que as pessoas trans, mesmo a contragosto da sociedade em geral, estão progredindo. Em relação a isso, as pessoas cisgêneras não precisam gostar nem aprovar, precisam aceitar e respeitar, e se acostumar com isso. Transfobia não é opinião, transfobia é preconceito, e não existe defesa para preconceito, é indefensável em qualquer esfera”, afirma a jornalista Luíza Eduarda.

A ideia do uso do esporte como agente de transformação social também é compartilhada por Valentina.

“Isso é exatamente o que eu quero, e é exatamente o que eu não tive. Precisamos de exemplos para que as pessoas trans vejam que elas também pertencem. Sou mulher desde que nasci e sempre sonhei em praticar esportes, e hoje me sinto uma mulher realizada porque sou e faço o que eu amo. Através do esporte, espero elevar a imagem das mulheres trans e fazer os outros pararem de falar de nós como pessoas desagradáveis ​​e de moralidade duvidosa”

Valentina Petrillo

Se tudo correr bem para ela no campeonato italiano de atletismo no próximo mês, assim como Laurel Hubbard, Valentina terá em breve pela primeira vez o maior palco esportivo do planeta para difundir a sua mensagem.

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