“A jaula de ferro” do capital produzirá “uma noite polar, gélida, sombria e árdua”?

Publicado originalmente em Coletivo Bereia por Leonardo Boff. Para acessar, clique aqui.

*Texto escrito no final de 2021

Seguimos ainda em 2021, ano que não acabou porque o Covid-19 anulou a contagem  do tempo por continuar sua obra letal. O 2022 não pôde, por ora, ser inaugurado. O fato é que o vírus colocou de joelhos todos os poderes, especialmente os militaristas, pois  seu arsenal de morte fez-se totalmente ineficaz. 

No entanto, o gênio do capitalismo, a propósito da pandemia, fez com que a classe capitalista transnacionalizada se reestruturasse mediante o Great Reset (a Grande Reinicialização), expandindo a recente economia digital mediante a integração dos gigantes: Microsoft,  Facebook, Apple, Amazon, Google, Zoom e outros com o complexo militar-industrial e de segurança. Tal evento representa a formação de um poder imenso, nunca havido antes. Notemos que se trata de um poder econômico de natureza capitalista  e que, portanto, realiza seu propósito essencial, o de maximização  dos lucros de forma ilimitada, explorando, sem consideração, os seres humanos e a natureza. A acumulação não é meio para um bem viver mas é um fim em si mesmo, vale dizer, a acumulação pela acumulação, o que é irracional.

A consequência desta radicalização do capitalismo  confirma o que  um sociólogo da universidade da Califórnia em Santa Bárbara, William I. Robinson, num artigo recente, bem observou (ALAI 20/12/2021): “À medida em que o mundo vai se livrando da pandemia, haverá mais desigualdade, conflitos, militarismo e autoritarismo e nesta mesma medida aumentarão as convulsões sociais e os conflitos civis; os grupos dominantes se empenharão por expandir o estado policial global para conter os descontentes em massa, vindos de baixo”. Com efeito, utilizar-se-á a inteligência artificial com seus bilhões e bilhões de algoritmos para controlar cada pessoa e a sociedade inteira. Esse brutal poder levará a humanidade para onde?

Sabendo da lógica implacável do sistema capitalista, Max Weber, um dos que melhor a analisou criticamente, um pouco antes de morrer, asseverou: “O que nos aguarda não é o florescimento do outono, nos aguarda uma noite polar, gélida, sombria e árdua (Le Savant et le Politique, Paris 1990, p. 194). Ele cunhou a expressão forte que atinge o coração do capitalismo: ele é uma “jaula de ferro” (Stahlartes Gehäuse) que não consegue romper e, por isso, nos pode levar a uma grande catástrofe (cf. a pertinente análise de M. Löwy, La jaula de hierro: Max Weber y el marxismo weberiana, México 2017). Essa opinião é compartilhada por grandes nomes como Thomas Mann, Oswald Spengler, Ferdinand Tönnies, Eric Hobsbawn entre outros.

Vários modelos de sociedade-mundo estão sendo discutidos para o pós-pandemia. Os mais importantes além do Great Reset dos bilhardários, são: o capitalismo verde, o ecossocialismo, o bien vivir e convivir dos andinos, a biocivilização, de vários grupos e  do Papa Francisco entre outros. Não cabe aqui detalhar tais projetos, coisa que fiz no livro Covid-19: A Mãe Terra contra-ataca a Humanidade (Vozes 2020). Apenas diria: ou mudamos de paradigma de produção, de consumo, de convivência e,  especialmente, de relação para com a natureza, com respeito e cuidado, sentindo-nos parte dela e não  sobre ela como donos e senhores, ou então realizar-se-á o prognóstico de Max Weber: poderemos de 2030 até no máximo 2050, conhecer um armagedon ecológico-social extremamente danoso para a vida e para a Terra.

Neste sentido, meu sentimento do mundo me diz que quem irá destruir a ordem do capital, com sua economia, política e cultura, não seria nenhum movimento ou escola de pensamento crítico. Seria a própria Terra, planeta limitado que não suporta mais um projeto de crescimento ilimitado. A visível mudança climática, objeto de discussão e de tomada de decisão (praticamente nenhuma) das últimas COPs da ONU, o esgotamento crescente dos bens e serviços naturais, fundamentais para a vida (The Earth Overshoot) e a ameaça de  rompimento das principais das nove barreiras do desenvolvimento que não podem ser rompidas a preço do colapso da civilização, são alguns indicadores de uma iminente tragédia. 

Um número significativo de especialistas em clima  afirma que chegamos tarde demais. Com o já acumulado de gases de efeito estufa na atmosfera não poderemos conter a catástrofe, apenas, com ciência e tecnologia, minorar seus efeitos desastrosos. Mas a grande crise irreversível  virá. Por isso se fizeram céticos e  até tecno fatalistas.

Seremos pessimistas resignados ou, no sentido de Nietzsche, adeptos da “resignação heroica”? Estimo, como dizia um pré-socrático: devemos esperar o inesperado, pois, se não o esperarmos, quando ele vier, não o perceberemos. O inesperado pode ocorrer, dentro da perspectiva quântica: o sofrimento atual por causa da crise sistêmica não será em vão; ele está acumulando  energias benfazejas que, ao atingir certo nível de complexidade e de acumulação, darão um salto para uma outra ordem mais alta com um novo horizonte de esperança para a vida e para o planeta vivo, Gaia, a Mãe Terra. Paulo Freire cunhou a expressão esperançar: não ficar esperando que um dia a situação irá melhorar, mas criar as condições para que a esperança não seja vazia, senão que, com nosso empenho, a façamos efetiva.

Creio que esse salto, com a nossa participação, poderá ocorrer e estaria dentro das possibilidades da história do universo e da Terra: do atual caos destrutivo, podemos passar para um caos generativo de um novo modo de ser e de habitar o planeta Terra. A arca de Noé está sendo construída pelos movimentos ecológicos, pelo eco feminismo e pelos modelos alternativos de economia circular, pelos grupos políticos engajados numa biocivilização. É nisso que creio e espero, reforçado pela palavra da Revelação que afirma: “Deus criou todas as coisas por amor porque é o apaixonado amante da vida”(Sabedoria 11,26). Ele não permitirá que terminemos assim tragicamente. Ainda viveremos sob a luz benevolente do sol.

***

Imagem de capa: Jeso Carneiro / Flickr

Leonardo Boff

Teólogo, escritor e professor. Um dos maiores representantes da Teologia da Libertação, corrente progressista da Igreja Católica. É autor de vários livros, entre eles, “O Caminhar da Igreja Com os Oprimidos” (1980), “Ecologia-Grito de Guerra, Grito dos Pobres” (1995) pelo qual recebeu o Prêmio Sérgio Buarque de Holanda como o melhor ensaio social daquele ano e em 1997, nos Estados Unidos, foi considerado um dos três livros, publicados naquele ano, que mais favorecia o diálogo entre ciência e religião.

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