A controvérsia da cloroquina no Twitter

Publicado originalmente em COVID-19 DivulgAÇÃO Científica. Para acessar, clique aqui.

Das várias controvérsias suscitadas pela pandemia de COVID-19, a utilização da cloroquina e da hidroxicloroquina para o tratamento da doença foi uma das que mais rendeu debate no Brasil, e as redes sociais constituíram um cenário importante para o compartilhamento de informações e opiniões sobre o tema. Por isso, foram objeto de estudo de pesquisadores do Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia, que avaliaram postagens publicadas no Twitter relacionadas às decisões da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre a realização de testes com os dois medicamentos.

O trabalho de Júnia Ortiz, Antonio Brotas e Luisa Massarani, publicado na Chasqui – Revista Latinoamericana de Comunicación, avaliou mais de 500 mil tweets publicados por usuários brasileiros.  Segundo os autores, “os resultados indicam uma incompreensão quanto ao funcionamento da pesquisa científica e a presença de discursos politicamente interessados contrários à ciência”.

Os rumores de que a cloroquina e seu derivado, a hidroxicloroquina, medicamentos tradicionalmente usados contra a malária e doenças autoimunes, como lúpus e artrite reumatoide, poderiam ser úteis no tratamento da COVID-19 surgiram ainda em março, no início da pandemia. O governo brasileiro comprou o discurso e muito rapidamente anunciou medidas para ampliar a produção desses fármacos e utilizá-los de forma massiva contra a doença causada pelo novo coronavírus. Paralelamente, a OMS também se posicionou, ao longo de 2020, conforme anunciava o andamento dos estudos da iniciativa Solidarity Trial, que reuniu instituições parceiras para investigar a eficácia de tratamentos contra a COVID-19, incluindo o uso da cloroquina.

Um pouco de história

No passado, cloroquina e hidroxicloroquina foram testadas, sem sucesso, para o tratamento de doenças virais como gripe, zika e Aids. No caso da COVID-19, resultados positivos em um teste in vitro alimentaram as esperanças de que o medicamento pudesse ser eficaz. Porém, logo outros testes mostraram que a substância não produzia o efeito desejado nas células do trato respiratório, as mais afetadas pelo novo coronavírus. Desde então, vários estudos, desenvolvidos em diferentes partes do mundo, testaram a droga. O veredito final foi dado pela OMS no dia 15 de outubro de 2020, com a divulgação de uma pesquisa que envolveu 35 países e apontou a ineficácia da cloroquina e da hidroxicloroquina como tratamento para a COVID-19.

Durante esse processo, no entanto, houve muito debate público sobre o tema. Medidas da OMS, em especial a suspensão temporária dos testes da Solidarity Trial para avaliar se a cloroquina não representava risco para os pacientes (em 25 de maio), a posterior retomada dos ensaios clínicos (em 3 de junho) e, finalmente, sua interrupção definitiva (em 17 de junho), geraram grandes quantidades de postagens no Twitter.

“Esse debate vai colocar em tensão o conhecimento científico, como se a discussão sobre a cloroquina e o seu uso estivesse a cargo de atores fora do campo da ciência e da saúde”, avalia Brotas.

Repercussões

No final de maio, a suspensão temporária dos testes foi motivada por um estudo que sugeria que o tratamento de pacientes hospitalizados com cloroquina e hidroxicloroquina gerava um aumento na taxa de mortalidade. Entre os usuários do Twitter, postagens feitas no dia do anúncio e no dia seguinte destacaram os contornos políticos que a discussão acerca da cloroquina ganhou no Brasil – como o fato de parte da sociedade atribuir o ceticismo em relação à substância como um posicionamento “comunista”.

Uma semana depois, o anúncio da retomada dos ensaios com cloroquina e hidroxicloroquina teve como repercussão, por exemplo, a publicação de críticas à OMS, que teria “mudado de ideia” quanto às suas recomendações de tratamento para COVID-19 – o que demonstra incompreensão dos processos da pesquisa científica, pois a OMS, embora tenha iniciado, suspendido e retomado estudos, não havia recomendado o uso da cloroquina de forma ampla.

Já em 17 de junho, quando os testes com cloroquina e hidroxicloroquina foram interrompidos após a constatação da ineficácia da substância na redução da mortalidade entre os pacientes com COVID-19, curiosamente, não houve muitas referências explícitas à ciência entre os tweets analisados. Os pesquisadores observaram, por outro lado, a presença de informações falsas, incluindo a afirmação de que autoridades políticas estavam usando a cloroquina para se tratar da doença.

Segundo o artigo publicado na Chasqui, “o debate em torno da cloroquina potencializou uma discussão sobre a função da ciência, o papel dos estudos realizados neste contexto e as funcionalidades da pesquisa científica, bem como seu impacto social”. Os autores identificaram que os usuários do Twitter, muitas vezes, usaram informações incorretas ou falsas para construir estratégias argumentativas baseadas em crenças e interesses políticos, mais do que nos resultados de estudos científicos. “Uma marca desses discursos é colocar em dúvida as instituições de ciência e saúde”, destaca Brotas.

O especialista nota, no entanto, que a controvérsia começou na própria comunidade científica. “A discussão da cloroquina e de suas potencialidades não é uma invenção dos negacionistas”, afirma, referindo-se ao desejo, por parte dos grupos de pesquisa, de encontrar e testar soluções para a pandemia – que é, afinal, como a ciência funciona. Porém, entre a publicação de um estudo exploratório e a formulação de uma política de saúde pública, há um longo caminho a percorrer. “O problema é que, mesmo antes de o uso da cloroquina se consolidar como uma estratégia realmente científica, ele foi assumido por agentes políticos”, resume.

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